terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ausência


Ando ausente deste espaço, principalmente graças ao uns problemas na vista que ando tendo e me dificultam bastante usar o computador. Prometo voltar com intensidade em breve, assim que resolvê-lo. Por ora, um vídeo que, em conversas com um amigo, terminei por revisitar. Por mais que agora ande mais próximo de Jim O´Rourke, Yasushi Yoshida, Bon Iver e Elliott Smith, os clássicos ainda tem uma força absurda.

Em breve posto também a "sinestesia", música que eu compûs nestes tempos de cegueira. (Que nada tem haver com esta, por sinal)



quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Elegia


Brindemos aos estrangeiros inquietos; aos que andam
com chagas nas pernas e passeiam, com o uísque solitário
da madrugada, no fundo da pressão das horas;
com a calma dos caçadores, e a seriedade
dos algarismos de um sarabande, vingar
uma mácula nesta santa complascência.

Nós, que elevamos os ombros e depositamos
o sangue diário em cada ato; que vamos mais longe
apesar das nódoas viscosas da existência; e agarramos
nos alpendres dos terremotos, nos moinhos dos furacões;
estendemos as mãos aos românticos, dizendo não haver
redenção neste mundo de discórdias.

Nós, desta matilha desunida, estes lupinos mancos
de olhos secos; rejeitamos a felicidade irrisória
dos saltimbancos, a ternura destes abraços que encerram
um ardor que nos condena a vagar, tal qual fantasmas,
espectros em busca de seus lençóis. Mas amamos,
como um porco-espinho de acúleos venenosos, e temos
os sonhos sóbrios de insensatez. Pois reconhecemos,
na rachura de nossos corpos, que portamos esta insígnia
do purgatório; um anseio, um ímpeto, uma brasa
que inflama a tocha dos santuários esquecidos.

Nós, que mergulhamos na angústia, sem a candura
dos bôbos-da-corte, sem as máscaras dos cínicos,
o medo dos estáveis ou a passividade dos serenos;
E que iremos, em qualquer direção, tombar neste solo baldio
as artérias de cada lombar despojada, para que possamos
fugir da perfeição do paraíso, ouvir os suplícios do mundo,
o turbilhão de gritos que nele se encerra; e erigir,
ao custo de nossa alma, com a sinceridade absoluta
de nossos olhos, uma réstia das verdadeiras catedrais.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Comédia Humana

A Comédia Humana é um título referencial à trilogia poética de Dante que Honoré de Balzac encontrou para definir a unidade de sua obra. Este pequeno trocadilho irônico nos diz muito sobre que espécie de retratos estão em jogo na literatura do principal autor francês de seus tempos: são dramas íntimos de figuras humanas, retratos psicológicos de personagens complexos que, em sua conjuntura e relações, erigem o espaço parisiense do século XIX. Ao invés da cosmogonia medieval de Dante, do inferno ao paraíso, Balzac nos explica o funcionamento do contrato social na prática urbana através dos pequenos dramas burgueses, e, apesar de chamá-lo de comédia, em geral, seus personagens traçam o percurso oposto, trágico, do paraíso ao inferno.

Pelo tom balzaquiano simultâneamente melodramático, burlesco e irônico (portanto, distante de uma subjetividade dos personagens e próximo das condições de vida de sua classe social), e cuja maior parte da obra foi publicada em folhetins jornalísticos, o que acompanhamos é o processo de perda da inocência de algum personagem ao entrar na vida amorosa e se deparar com o luxo parisiense, e a depravação das virtudes na medida em que há uma ascenção social. É o que ocorre com Lucien de Rubempré em Ilusões Perdidas, oriundo da província e instigado por um amor romântico, vai à capital francesa com a pretensão de se tornar poeta (e desiste do trabalho árduo e artesanal da poesia em favor dos retornos imediatos do jornalismo); Também com Eugène de Rastignac em Pai Goirot, que desiste dos estudos que veio realizar na capital ao se apaixonar pelo luxo da alta sociedade; O mesmo ocorre com Félix em O Lírio do Vale, e até Carlos Grandet em Eugênia Grandet, porém estes dois últimos se encontram divididos entre duas espécies de amor: o amor platônico (que tem como obstáculo de realização a distância entre o que ama e o amado), e o desejo carnal (que surge como um paliativo do amor platônico não-realizado). O que irá tornar os retratos balzaquianos verdadeiramente interessantes é o tratamento único que dará a cada personagem, os meandros singulares que os envolve, e as reações diferentes que terão em relação a um mesmo espaço orgânico, desenho que Balzac faz de Paris, uma sociedade viva que, por seu luxo ostensivo, seduz e deprava quem dela se aproximar, retirando-o do estado de pureza com promessas e sonhos de uma felicidade plena que resultará apenas em conflitos, mentiras, e infelicidade; um mundo de aparências atrativas, instaurado após a revolução, e que excita a avidez por poder e disperdício. Estas são qualidades da condição humana – sofrendo pela distância platônica entre sua natureza material e o ideal, o homem encontrará nos vícios um paliativo para este “ideal não-realizado” – O Lírio do Vale talvez seja sua obra de maior compreensão destas premissas filosóficas, livro que irá caracterizar um personagem romântico com ímpetos de retorno ao útero materno, amante do isolamento da vida social, e que encontra na comunhão com fenômenos naturais - vales, pradarias, estrelas - um estado de redenção; mas que irá se desvirtuar assim que se deparar com a paixão. Este desvirtuamento é no que consiste a condição humana.

Trata-se, sobretudo, de levar adiante as reflexões inauguradas por Rousseau (em diversos momentos, o escritor sugere ser um aluno de Jean-Jacques, chegando a citá-lo diretamente): Mas, nos tempos de Balzac, já seria um erro acreditar que o contrato social poderia ser vigorado pela virtude, ou que os vícios possam ser freados pelo Estado. O efeito do contrato social não instaurou uma natureza diferente das relações humanas, mas tão somente incentivou que os membros do sociedade abstenham-se da virtude e lancem toda responsabilidade legislativa a instituições igualmente corrompidas. O corpo burocrático se separava das decisões políticas diretamente humanas, efeito que até hoje persiste. O platonismo rousseaniano decái perante o furor das paixões excitadas por esta sociedade liberal, e Balzac (um monarquista, por sinal) reconhece que um retorno ao estado de inocência é ilusório, pois a comédia humana destruirá quaisquer idealismos. Os personagens que insistem na manutenção do virtuosismo neste campo de guerra sofrem as consequências desta escolha: a solidão trágica de Eugênia Grandet, a morte por ciúme da condessa de Mortsauf, a miséria e o anonimato do escritor Daniel D´Arthez, a prisão de David Séchard por dívidas contraídas pelo irmão, ou a morte num quarto de pensão e o subsequente enterro abandonado do pai Goriot - uma espécie de Rei Lear que irá morrer em miséria por mimar a ostentação das filhas, símbolo central de um heroísmo honrado que decái com a ascenção da burguesia na França.

Os resultados deste percurso são sempre trágicos: o homem sái de um estado de pureza para mergulhar num abismo de sofrimento. É o que ocorre com Lucièn de Rubempré (personagem central de seu magnus-opus Ilusões Perdidas e provável alterego de Balzac – incentivado pelo sucesso comercial de Walter Scott, Balzac vai da província a Paris afim de arriscar-se à fama de escritor). Este destino de perdição do homem não é remediável. Porém, ainda que sem jamais enfatizar uma possível terceira via aos impasses que coloca, pode-se deduzir, da atitude de alguns de seus personagens, que Balzac ainda nos deixa caminhos abertos.

David Sechard irá traçar um caminho oposto a Lucién: não irá ceder à imediaticidade das paixões parisiense, viverá em miséria e, junto com um grupo de estudiosos pretendentes a escritores, irá exercitar sua arte cotidianamente para, no futuro, ser reconhecido como um dos grandes escritores da história. Apesar de não ser capaz de “salvar” Lucién, Sechard será o exemplo de virtude, da figura obstinada em manter-se sã em um mundo degradado, aquele que “não acredita que exista genialidade sem conhecimentos metafísicos”.

Há também Eugène. Contanto Eugène de Rastignac venha a traçar o mesmo percurso de Lucièn de Rubempré, este jovem advogado mantêm sua generosidade – é quem permanece ao lado do Pai Goriot até sua morte, como um filho que reconheceu a sujeira da sociedade parisiense, mas não se desvirtuou (por completo). Após o enterro de Goriot, Eugène olha Paris dos montes e diz a si mesmo: “Agora é entre nós dois” – abandonará os estudos, mas assumirá uma atitude de enfrentamento, de combate a determinados ideais lançando-se à estrutura onde estes ideais vigoram afim de corromper o o que está corrompido. Esta percepção de mundo ocorre devido ao encontro do jovem provinciano com a misteriosa e cativante figura de Vautrin, um “Iago” que induz o destino dos homens contra as convenções sociais, um cínico de atitudes anarquistas cujo tom traz uma secura incisiva e faulkneriana, absolutamente distoante da tônica melodramática dos demais personagens de Balzac. Vautrin é a radicalização desta sociedade, a figura que marca a passagem da democracia ao anarquismo. Não é um herói – ao contrário disto, é um criminoso. Porém um criminoso cuja víl motivação de anti-sociabilidade parece santa perto do desenho que Balzac faz do resto da sociedade. Segue um longo discurso que, além de evidenciar quem eu acho a figura mais interessante de todos os livros que li, também pincela o fundamento das questões balzaquianas. É, possívelmente, pela rispidez e pela súbita aparição em um livro que, até então, mantêm um singelo tom de novela (antes as novelas de nossos tempos tivessem esta mesma coragem!) o trecho que mais gosto de tudo que li do francês:

"Quanto a nós, nós temos ambição, temos os Beauséant como aliados, andamos a pé, comemos os refogados da mamãe Vauquer e gostamos dos belos jantares do Faubourg Saint-Germain, dormimos num catre e queremos um palacete! Não censuro seus desejos. Ter ambição, meu queridinho, não é para qualquer um. Pergunte às mulheres que homens elas procuram, são os ambiciosos. Os ambiciosos têm os rins mais fortes, o sangue mais rico em ferro, o coração mais quente do que os outros homens. E a mulher fica tão feliz e tão bela nas horas em que é mais forte, que prefere a todos os homens aquele cuja força é enorme, ainda que corra o risco de ser destruída por ele. Faço o inventário de seus desejos a fim de lhe fazer uma pergunta. A pergunta aqui está. Temos uma fome de lobo, nossos dentinhos são pontiagudos, como faremos para encher a marmita? Temos que comer primeiro o Código, não é divertido e nada nos ensina, mas é preciso. Que seja. Tornamo-nos advogados para virmos a ser presidentes de um tribunal, condenarmos aos trabalhos forçados uns pobres-diabos que valem mais do que nós com T.F. tatuado sobre os ombros, para provar aos ricos que eles podem dormir em paz. Não é divertido e, além disso, é demorado. Primeiro, dois anos nos aborrecendo em Paris, olhando, sem tocar, os docinhos que nos dão água na boca. É cansativo desejar o tempo todo sem nunca se satisfazer. Se o senhor fosse pálido e da natureza dos moluscos, nada teria a temer; mas temos o sangue febril dos leões e um apetite de fazer vinte bobagens por dia. Vai então sucumbir a este suplício, o mais horrível que já vimos no inferno do bom Deus. Admitamos que seja sensato, que beba leite e que faça elegias; será preciso, generoso como o senhor é, começar, depois de muitos aborrecimentos e privações capazes de enraivecer um cão, por ser o substituto de algum fulano, num buraco da cidade onde o governo vai lhe atirar mil francos de salário, como se atira uma sopa a um buldogue de açougueiro. Lata para os ladrões, pleiteie a favor dos ricos, mande guilhotinar gente de bem. Muito obrigado! Se não tiver protetores, vai apodercer em seu tribunal do interior. Aos trinta anos, será juiz, com mil e duzentos francos por ano, se ainda não tiver jogado longe a toga. Quando chegar aos quarenta, vai casar com a filha de algum moleiro, com cerca de seis mil libras de renda. Obrigado! Tendo protetores, será procurador do rei aos trinta anos, com mil escudos de salário, e se casará com a filha do prefeito. Se fizer algumas pequenas baixezas políticas, como ler num boletim Vitel em vez de Manuel (dá rima, deixa a consciência tranquila), será, aos quarenta anos, procurador geral e poderá se tornar deputado. Observe, meu caro menino, que teremos arranhado nossa consciênciazinha, que teremos tido vinte anos de aborrecimentos, de misérias secretas, e que nossas irmãs terão ficado para titias. Tenho a honra de lhe fazer observar também que há apenas vinte procuradores gerais na França e que vocês são vinte mil aspirantes ao posto, entre os quais há os trapaceiros que venderiam a família para subir um grau. Se a profissão o desgosta, vejamos outra coisa. O barão de Rastignac quer ser advogado? Ah! Muito bem. É preciso penar por dez anos, gastar mil francos por mês, ter uma biblioteca, um gabinete, frequentar a sociedade, baijar a toga de um promotor para conseguir causas, varrer o palácio com a língua. Se tal profissão lhe desse sucesso, eu não diria que não; mas encontre em Paris cinco advogados que, aos cinquenta anos, ganham mais de cinquenta mil francos por ano. Ah! Em vez de me enfraquecer o ânimo, eu preferiria me tornar corsário. Aliás, onde conseguir dinheiro? Tudo isto não tem graça. Temos uma fonte no dote de uma mulher. Você quer se casar? Será amarrar uma pedra ao pescoço; além disso, casando-se por dinheiro, o que acontece com nossos sentimentos de honra, nossa nobreza? Mais vale começar hoje sua revolta contra as convenções humanas. Não seria nada se deitar como uma serpente diante de uma mulher, lamber os pés da mãe, cometer baixezas que enojariam uma porca, blergh! Se você ao menos encontrasse a felicidade. Mas você será infeliz como as pedras do esgoto com uma mulher com quem tiver se casado desse jeito. Ainda vale mais guerrear com os homens do que lutar com sua mulher. Aí está a encruzadilha da vida, rapaz, escolha. Você já escolheu: você foi à casa de nossa prima de Beauséant e lá farejou o luxo. Você foi à casa da sra. de Restaud, a filha do pai Goirot, e lá farejou a parisiense. Naquele dia, você voltou com uma palavra escrita na testa, e que eu soube ler muito bem: Vencer! Vencer a qualquer preço. Bravo!, disse eu, aí está um tipo que me agrada. Você precisou de dinheiro. Onde conseguir? Você sangrou suas irmãs. Todos os irmãos espoliam um pouco das irmãs. Seus quinhentos francos arrancados, Deus sabe como, num país onde se encontram mais castanhas do que moedas de cem tostões, vão voar como soldados na hora da pilhagem! E depois, vai fazer o quê? Vai trabalhar? O trabalho, concebido como você o concebe agora, consegue, nos velhos dias, um apartamento na casa da mamãe Vauquer aos fulanos da estirpe de Poiret. Uma fortuna rápida é o problema ao qual os cinquenta mil jovens que estão em sua situação se dedicam. Você é uma unidade desse total aí. Imagine os esforços que tem pela frente e a fúria do combate. Vocês terão que se comer uns aos outros como aranhas num pote, considerando que não existem cinquenta mil boas colocações. Sabe como alguém abre seu caminho por aqui? Pelo brilho do gênio ou pela habilidade da corrupção. É preciso entrar nessa massa de homens como uma bala de canhão, ou por ela se imiscuir como uma peste. A honestidade de nada serve. Todos se dobram sob o poder do gênio, detestam-no, tentam caluniá-lo, porque ele toma sem dividir, mas todos se dobram se ele persiste; numa palavra, adoram-no de joelhos quando não conseguiram enterrá-lo na lama. A corrupção é a arma da mediocridade que abunda, e você sentirá sua presença em toda parte. (...) E o homem honesto é o inimigo comum. Mas o que você acha que seja o homem honesto? Em Paris, o homem honesto é aquele que se cala e se recusa a dividir. Não estou falando desses pobres coitados que por toda parte cumprem seu dever sem jamais serem recompensados por seu trabalho e que chamo de confraria dos chinelos do bom Deus. Sem dúvida, ali está a virtude em toda a flor de sua asneira, mas ali está a miséria. Vejo daqui a careta dessa boa gente se Deus nos fizesse a brincadeira de mau gosto de estar ausente no juízo final. Então, se quiser a fortuna rapidamente, é preciso já ser rico, ou parecer ser. Para enriquecer, trata-se aqui de fazer grandes jogadas; ou então dar calotes e estamos conversados! Se, entre as cem profissões que se pode abraçar, há dez homens que logo têm sucesso, o público os chama de ladrões. Tire suas conclusões. Eis a vida como ela é. Nada disso é mais bonito do que a cozinha, fede tanto quanto, e é preciso sujar as mãos se queremos nos regalar; saiba apenas limpá-las direito: aí está toda a moral da nossa época. Se lhe falo assim da sociedade é porque ela me deu esse direito, eu a conheço. Acha que estou criticando? De modo algum. Ela sempre foi assim. Os moralistas jamais a mudaram. O homem é imperfeito. Às vezes ele é mais ou menos hipócrita, e os ingênuos dizem então que ele tem ou não tem modos. Não estou acusando os ricos em favor do povo: o homem é o mesmo em cima, embaixo, no meio. Em cada milhão desse grande rebanho se encontram dez compadres que se colocam acima de tudo, até das leis; estou entre eles. Você, se for um homem superior, ande em linha reta e de cabeça erguida. Mas vai ser preciso lutar contra a inveja, a calúnia, a mediocridade, contra o mundo todo."

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Silêncio de Orfeu


Reminiscências enferrujadas nas
paredes marmóreas, destiladas de todo
cansaço. Um registro dos flocos de neve
em tua tez, honrar-lhe, mais uma vez,
com um bálsamo, as virgens
recordações dos pálidos dias.

Olhos secos com que vejo o pejo
de uma tarde, e aos espíritos confesso
a incerteza dos serões, a fraqueza dos arpões
lançados às visões áureas, que inda guardo
e escondo em algum canto de agonia.

Barqueiro, ouviste os suplícios das almas
que afundam em teus rios de morte?
Até o inferno iremos, no afã, em busca
deste fantasma que ao Sol vira poeira.
E morreremos, atrás da cura. Atrás disto
que nunca poderemos ser.

Nutrimos solidão em nossos dedos,
candura em nossas perdas, apatia ao véu da vida.
Um augúrio breve, no crepitar das pedras,
deste quarto antigo. Censuras o mergulho,
belo lago? Se inda busco no infinito
o que é durável? Se inda busco no infinito...

A vigília sagrada que habita
a caverna onde espero com a lira
de Apolo um instante em que possa
conspurcar teus olhos de vida.

Conspurcar teus olhos de vida.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Comentário do Festival II

Les Herbes Folle – 7/10 – Uma boa repetição. Resnais não faz nada de novo. Mas não precisa fazer nada de novo para o ingresso valer a pena. Seu modo de narrar é vigoroso. Por vezes, se perde. No todo, uma experiência agradável. E nada mais. (Destaque negativo para a projeção. Scope em rain 1.777 não tem condição. Num filme onde enquadramentos e movimentos de câmera tem função narrativa tão importante, isto é imperdoável.)

Sede de Sangue – 5/10 – Uma triste repetição. Chanwook sabe muito bem o mecanismo que executa, e o executa até com certo rigor. Mas comete os mesmos erros de sempre. Um filme sobre sangue. De um lado, o vampiro humanista e íntegro que bebe sangue por necessidade. Do outro, a vampira que o bebe por diversão, desafio, e senso de superioridade (e a que usa tênis americanos). Chanwook defende que o sangue só deve ser bebido em última instância, por necessidade. Mas sua direção tem como foco uma certa ironia cínica em relação à violência. Uma contradição que não se resolve. E um coreano jogar os EUA no meio de maneira tão superficial é de uma canastrice inaceitável. Não sei porque deixei um amigo me convencer a trocar o iraniano por este.

Erótica Aventura – 9,5/10 – Uma brilhante repetição. Observar alguém que vai até o inefável. Observar os corpos femininos encontrando as estrelas dentro de si mesmas. No fundo, Brisseau não está renovando o seu cinema. Ao contrário, está levando a um ponto limítrofe. Este ponto é o lugar refinado onde vemos o que é o seu cinema com mais pureza – Anjos Exterminadores já havia dado um passo nesta direção. Ao mesmo tempo, nos deixa com um medo absurdo de que, de tanto refinar o que já está refinado, tudo se esgote. A meu ver, Anjos Exterminadores já corria este risco. Aqui, assumir este risco e sustentá-lo eleva a obra a uma genialidade monumental. Ambos ainda se seguram. Temo por seu próximo filme. Pois todo cinema tem um limite até tudo se desfazer. Mas não olhemos Erótica Aventura com pessimismo: saí do filme assombrado. Ainda que prefira Celine ou Indigentes do Bom Deus, encontrei-me frente a uma estranha obra-prima onde qualquer um terá dificuldades de demonstrar de onde vem seu vigor absurdo (um vigor que nem todos sentem, por sinal). Perdeu meio ponto somente pela repetição. Só Denis realmente levou seu cinema adiante, só ela merece um dez.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Comentário do festival I

Assumindo a pluralidade deste blog, alguns comentários sobre filmes que vi no festival. Espero que ajude alguém. Começo pelos que vi na semana dos realizadores.

Sagrado Segredo – 4/10 – Estava animado para ver um filme do André Luiz Oliveira, visto que Meteorango Kid é uma obra-prima. Mas o filme não corresponde. Admiro muito o ponto de partida e a coragem em tentar enraizar um deslumbre com uma religiosidade já há tanto desgastada. O problema é que o filme não consegue este enraizamento, e tudo ecoa de modo muito artificial. Aquele querido mês de agosto mal sucedido. Créditos à empreitada.

A fuga da mulher-gorila – 6/10 – Um filme bem dirigido, e consciente de sua organização. Todas as soluções estéticas servem ao propósito. O que desgosto do filme está para além do cinema, e acaba inibindo minha relação com o filme por tabela: viajar sem norte, e abdicando da necessidade de um norte, não dá. Enquanto uma das personagens tem sua angústia justificada (na sequencia que talvez mais destoe do filme), o filme adere ao ponto de vista da outra. Antes mergulhar no abismo a ter de fingir que a mulher-gorila existe. É uma solução fácil se esconder em máscaras, ir embora de qualquer maneira. Fácil o bastante para nunca deixar de ser uma mentira. O que faz com que os adereços do filme muitas vezes não sejam mais que adereços. Irmão mais novo do Céu de Suely, ainda prefiro o deserto à invenção sem fundamento.

No meu lugar – 7/10 – Apesar de tudo, gosto do filme. Tem sensibilidade e humanidade com os personagens e as situações. Algumas cenas fogem do tom desdramatizado e cotidiano que permeia o filme, pequenos desvios que não incomodam. E o final é um amarrado desnecessário. Fora isso, o registro tem a beleza de quem olha a vida com simplicidade. Sobretudo, um filme necessário em meio há tantos horrendos que tratam o Rio de Janeiro com tanto escândalo.

35 doses de rum – 8/10 – Considerando a filmografia de Claire Denis, este filme surge como um sopro fraco (porém, agradável) entre tantas ventanias fenomenais. Destaque para a sequência do gato morto, uma espécie de divisor do filme que, dada a sua colocação e estranheza, consegue ganhar força. Uma homenagem ao Ozu, por sinal, mas isto é o menos importante.

24 city – 3/10 – o Jia Zhang Ke costuma ser taxado como “diretor da matéria”, “diretor de superfícies”, entre outros títulos que, para mim, dizem apenas uma coisa: diretor superficial. Estudar a superfície com a câmera pode encontrar diversos resultados - o emanar de uma força bruta; o extrair de uma força qualitativa; a abertura de um espaço à projeção do espectador sobre esta superfície; entre muitos outros etc... Jia Zhang Ke faz da superfície uma redundância temática, enquadramentos balanceados em situações que são, no máximo, curiosas, remetendo sempre à mesma idéia por quase duas horas. O tempo estendido não nos projeta na imagem, pois a própria imagem é tão unívoca, literal e sem vigor, que tudo que resta é o preciosismo de uma beleza balanceada. Uma pura vaidade sem ambiguidades, contradições, conflitos ou movimento. Somado a isto, ainda há o jogo de cena nas entrevistas que, tais como as imagens, é tão frio, mecânico e repetitivo, que instaura conosco uma barreira intransponível. Aqui fica visível que Jia Zhang Ke está atento às questões contemporâneas, porém sem explorá-las com sinceridade, mostrando-se incapaz de levar adiante uma premissa interessante, por que não entende que, para se trabalhar efetivamente ao nível da superfície, deve-se abrir espaço para que ela traga à tona seu vigor, ao invés de lhes impor um sentido de antemão. Senão, o esmero é esmalte e nada mais. O que Chantal Akerman faz em 10 minutos no Estado do Mundo é muito mais forte do que isto aqui.

As viagens do vento – 4/10 – Filme colombiano enlatado para festivais. Deslumbrado com a paisagem que filma, Guerra esquece da história que conta – dilata o tempo quando desnecessário e corta quando começamos a nos interessar, aproxima quando devia se afastar e vice-versa. A fotografia deslumbrante não é o suficiente para estruturar o percurso de seus personagens. As situações tem potencial, mas quase nunca são exploradas devidamente. Só podemos atribuir isto a inexperiência, insegurança e uma vontade de agarrar sua fragilidade nas paisagens envolta. Como nunca havia visto um filme colombiano antes, dou uma trégua a quem talvez tenha tido a melhor das intenções. Isto, menos o final do filme – não há nada mais condenável do que o que ele faz com aquele menino.

Porco cego quer voar – 9/10 – Um dos primeiros filmes mais animadores possíveis. Desconheço realmente as situações espelhadas, mas isto, me parece, não importa tanto. Visceral e feliz ao mesmo tempo, tem sequências que nos agarram pela goela para, em seguida, nos fazer sorrir e cantar. A maneira como movimenta a câmera e dispõe os atores em cena é tão única, tão rara em sua vontade absoluta de não plasticizar nenhuma situação que este filme surge como uma expressão autêntica e vigorosa entre tantos made for festivals. Um drama de Lars von trier que de repente se torna musical de Fred Astaire (ou de Stevie Wonder, se possível). As vezes, peca pelo exagero em metáforas muito óbvias. Mas nunca perde o tom absolutamente seco e contagiante que tem. O que já é um grande feito para um diretor da Indonésia em seu primeiro longa-metragem. Aguardo com expectativa o seu próximo filme.

Vincere – 9/10 – Belo filme de Bellochio. A estrutura narrativa tem intensidade e ritmo constante, sem variantes; a catarse é sempre crescente, nos lembrando (inclusive pela história) A Troca, do Clint Eastwood. O único momento em que pára (muito conscientemente) é no que talvez seja o diálogo mais importante do filme, entre a prisoneira e seu psicólogo. Por vezes, esta intensidade contínua faz perder a força de situações erigidas com muito rigor, onde sentimos falta de permanecer por alguns segundos a mais antes do corte. Para o bem ou para o mal, Bellochio vai com sua opção estética até o fim, promovendo diversos momentos de intensidade e grandiloquência que já elevam (e muito) o filme. Algumas outras pausas a mais, um pouco menos de rigor no seu princípio narrativo, e algumas outras oscilações onde ganhariamos em intimidade e perdiriamos em grandiloquência – se tudo isto fosse cautelosamente mapeado e executado, talvez fizesse uma obra-prima.

White Material – 10/10 – Admito que não é o melhor filme de Claire Denis. Também admito que exige muito para que se possa estabelecer uma relação com ele. Mas o que dizer? Um filme em ebolição – sobre a vigorosa resistência de um objeto ao olhar da câmera; sobre a força do choque que sobressai quando tentamos impor sentido a uma matéria em estado puro; sobre a energia que dispende do combate exercitado pelo outro quando lhe tentamos nomear, quando lhe damos um sentido único e lhe controlamos. Narrativa que corre o risco de se desfazer, mas que se segura, não se sabe como. O contraplano que não permite que o plano lhe determine, em uma das decupagens mais rigorosas e conscientes que já vi. Plano e contraplano anti-sintéticos, travando sua guerra milenar. Um filme impregnado desta força, que faz deste eterno combate entre forma e matéria tanto o seu tema quanto a energia que lhe move. Aqui e alí, ecos de Terrence Malick. Lucidez e experiência de uma diretora em seu auge. Não há mais o que dizer.

Ainda faltam (pelo menos) Les herbes folle (Resnais), About Elly (Farhadi) e Erótica Aventura (Brisseau). Confesso que o Brisseau é o que mais tenho esperado deste festival. Espero não me decepcionar. Comento quando os ver.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Invertendo os papéis



Foto tirada pelo JP.

"Ao gritar ação, os atores ficavam parados e a equipe se mexia." (comentário do Fábio ao me enviar a foto).

Traz grandes saudades e lembranças fantásticas...

domingo, 20 de setembro de 2009

Guarda Noturno



Seguro a madrugada, perplexo de calma, e assisto
de soslaio, a reconstituição da igreja. Teu corpo,
que foge em cada esquina ainda convoca
os morcegos da antiga construção.

Por trás das lentes, vi que choravas,
Por dentro em silêncio, como se tudo
fosse um segredo ainda maior.

Sentes ao lado e veja...! Como os três homens
esculpem os anjos com espátulas, para que
o Sol do amanhã não nos peça lágrimas,
e nem tristes orações.

... pois para a noite voltaremos juntos,
caso a manhã não nos traga
as mais serenas explicações.

Espanto e Curiosidade


"A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, pular para uma outra novidade. Esse ver não cuida em apreender nem em ser e estar na verdade, através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. É por isso que a curiosidade se caracteriza, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. (...) A curiosidade, a que nada se esquiva, o falatório, que tudo compreende, dão à pre-sença, que assim existe, a garantia de 'uma vida cheia de vida', pretensamente autêntica." (Extraído de Ser e Tempo)

Relendo o Ser e Tempo, me impressiona sobretudo a precisão com que Heidegger, o mais “grego” dos filósofos contemporâneos, coloca problemas sérios de nossos tempos sempre de modo ontológico, isto é, remetendo a um comportamento da presença. Duas disposições fundamentais: a curiosidade e o espanto. O primeiro, fundado num modo de ser impróprio, porém constitutivo; o segundo, o verdadeiro berço do filosofar. A curiosidade é caracterizada por impermanência e dispersão; uma espécie de “revanche” da vivência cotidiana, dominada pela impropriedade do público no qual nos perdermos na maior parte das vezes; revanche que ocorre quando encontramos uma abertura ao mundo circundante, isto é, quando abrimos uma brecha para escapar deste modo-de-ser comum e decaído, perdido na publicidade (isto é, assumindo comportamentos ditados não por sua própria abertura ao ser, mas por uma espécie de “regime do impessoal”). Ao nos depararmos com “o novo”, caracterizado por esta ruptura do mundo circundante e pelo encontro com um outro possível modo-de-ser no mundo, a curiosidade age como uma espécie de placebo, impedindo o espanto. A curiosidade nos segura no mesmo modo de ser tratando “o novo” como um “já compreendido”; o novo é incapaz de nos lançar em uma abertura ao ser, pois enxergamos o novo como curiosidade, como um “já compreendido”. Buscar o novo, com esta disposição, é pura catarse sem nenhuma abertura efetiva ao próprio ser: “Em sua ambiguidade, o falatório e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público.”

O espanto, por outro lado, nasce do ócio, do demorar-se junto ao novo, de uma abertura. Esta abertura é uma espécie de exercício, e não um modo-de-ser imediato (Heidegger, diferente da maioria, nunca privilegiou o “imediato” apenas por ser o acesso mais rápido aos entes; pelo contrário, Heidegger compreende que sempre, ainda que sem compreensão disto, estamos lançados em um mundo, comportando-se e relacionando-se com um ente de maneira já mediada por este comportamento. Não a toa, algumas vezes, Heidegger indica que um dos problemas fundamentais da filosofia do idealismo alemão, culminando em Hegel, é identificar na “intuição pura” o modo adequado de acesso ao ser. Para Heidegger, de “imediato”, o ser encontra-se oculto por nosso próprio comportamento em relação e ele). No espanto, somos lançados ao Ser do ente, e ao mesmo tempo, lançados a nós mesmos, pois nós estamos sempre em relação com o Ser.

Tratar o mundo como curiosidade é fugir da angústia, a disposição privilegiada de ruptura do mundo circundante, de compreensão que o mundo se fundamenta em um abismo, em um “nada”. Através da angústia é que podemos encontrar nosso poder-ser mais próprio. Hoje em dia, foge-se da angústia com tanto temor que o novo termina por perder sua efetividade – não nos aproximamos dele com espanto, mas com mera curiosidade.

Não vou me estender numa das reflexões mais ricas já elaborados. Sintetizá-la sem erros é uma tarefa de Hércules. Prefiro ficar com as citações:

"De início, a presença é impessoal e, na maior parte das vezes, assim permanence. Quando a presença descobre o mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de “mundo” e esta abertura da pre-sença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a pre-sença se tranca contra si mesmo."

Termino citando uma imagem de Kieslowski, um dos cineastas que fez deste problema um de seus tópicos, em A liberdade é azul – os homens a saltar de bungee jump, uma imagem aparentemente desconexa, mas que cái como uma luva em um filme onde uma mulher tem de lidar com a morte de entes queridos. O bungee jump surge como um salto que não se efetiva – visa-se a tensão, a “excitação e inquietação”, porém sem um salto efetivo. A corda amarrada nos pés garante que irá retornar. A morte, por outro lado, não permite que se fique sempre o mesmo, não tem esta espécie de retorno possível.


segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Espetáculo do Sacrifício



O que julgo haver de melhor em Ondas do Destino é a exposição esquemática de um cinema que me causa repulsa. Assisti poucos filmes de Lars Von Trier, o que naturalmente desqualifica uma visão geral da obra, e todos que assisti foram experiências sádicas o suficiente para não desejar retornar. O mérito de Ondas do Destino seria me explicar exatamente por quê não desejo retornar, isto é, por quê se criou em mim o preconceito. Um preconceito, porém que se reafirma a cada filme, e que se funda em alguns princípios problemáticos do autor. Estes que desejo comentar.


O princípio do filme planta a semente, e ilustra o desejo fundamental de Von Trier: pôr os sinos em uma igreja sem sinos. O que isto significa? Retornar, no sentido de re-encontrar, o princípio originário de uma instauração de um mundo, a operação fundadora de uma instituição de um modo de viver, uma re-atualização do sentido primeiro de uma sacralização do mundo. Frente a uma instituição católica incapaz de reatualizar seus princípios, que passa a funcionar mecânicamente com leis imutáveis e antiquadas, o que se busca é restituir seu envio histórico, em outras palavras, recolocar em vivência o sentido do “bem”. A premissa é interessante, e não a toa os primeiros momentos do filme tem alguma força.

Mas toda a força se esvai quando o caminho que Lars Von Trier trilha, no sentido deste re-encontro de um modo de viver com seus próprios princípios, se desenha esquemático e, sobretudo, absurdamente irreal. A exaltação de uma dramaticidade que não se contêm, registrada por uma câmera na mão próxima, vizinha, não é o suficiente para romper esta barreira que o diretor erige entre o aparato e seu tema. Pois a muralha é antes conceitual do que estética: através do personagem-central de Bess, Von Trier expõe a sua figura-ideal de ator, o obediente, que põe seu corpo à mercie das intenções mal-esclarecidas de outrem; a matéria anula seu vigor, isto é, se sacrifica em nome da idéia – em outras palavras, não há o combate tradicional entre o sensível e o inteligível. Para que o cinema de Von Trier aconteça, é necessário que o sensível cometa seu “sacrifício”, o termo chave de suas concepções.

O que resulta deste sacrifício? Um artificialismo extremo. O emocionalismo vira pura catarse e inibe um vigor qualquer que pudesse emergir das situações. A narrativa se torna óbvia e repetitiva – um quadro de desgraças de um sadismo incômodo. O tempo dilatado não visa projetar o espectador no paradoxo da imagem, nem visa apresentar-lhe uma sensibilidade única no mundo, mas apenas segurá-lo pelo pescoço em situações que já se apresentam unívocas, como becos sem saída – visa-se um êxtase que se encerra em si mesmo.


O sacrifício é identificado como a instância criadora, instauradora de uma verdade sacra (Mircea Eliade). O problema da proposição de Lars Von Trier não é, propriamente, o princípio do sacrifício. Tal qual Bess diz de Deus, o “sacrifício” é apenas uma palavra dentre tantas outras, cujo mecanismo deve ser mais bem esclarecido, e o sacrifício cristão que Von Trier identifica como executor de um rasgão no mundo, como “por os sinos na igreja”, é apenas um modo de sacrifício tão vago quanto o “Deus” de seus personagens protestantes. O sacrifício é um dos meios de despertar o homem para o “Bem”, de fato. Mas o processo de sacrifício que Lars Von Trier instaura, exatamente por esta fabulação alucinada que exige de sua matéria, é esquemático, metódico, mentiroso e, acima de tudo, uma exaltação irrefletida do sofrimento. E que sentido tem neste sofrimento que eleva ao milagre, se o próprio milagre ecoa como uma farsa barata em meio a tantas outras, neste vale-tudo que deixa de visar o milagre e passa a visar o sadismo?

O sadismo hiperbólico se apresenta como o caminho, por excelência, do sacrifício que Von Trier pede para o acontecimento do milagre. Este sadismo é justificado pelo amor. Bess ama Jan, e anula a si mesmo, sacrifica a si mesmo, pondo-se num processo de sofrimento absurdo em nome deste amor. É belo que o amor transforme as pessoas, tal qual Bess, de santa vira puta. Não é belo que isto ocorra graças aos pedidos de Jan (ou Deus, a esta altura do filme, que pede o sofrimento de Bess como “redenção”. O ato profano não é de fato profano, mas uma mediação sádica à iluminação). Impossível concordar com esta espécie de amor que sofre desmedidamente por ausência, que exige a presença constante do outro e transforma o outro em um objeto de obsessão. Um amor desta natureza já não é puro. É um amor que decai em histeria e psicose (Andre Comte-Sponville nos lembra que a virtude é um pico entre dois abismos), e nada soa mais irrisório do que chamá-lo de “bondade”, tal qual o faz o personagem do médico perante o tribunal. Em síntese, o amor segundo Von Trier é sadismo, puro sofrimento, e quando isto ocorre, o sentido primário do amor é esquecido. O sadismo termina santificado (neste ponto, o amor cristão é condenável).


Observar uma tortura que, há tempos, já deixou de ser amor, não é algo que me apeteça, sobretudo quando o que teremos no final é um milagre mecânico. Esta tortura Lars Von Trier também impõe a seu espectador, com a promessa de que, no final, ela será necessária para um milagre genuíno. Este milagre termina por vir frágil e irrisório. Dreyer, o coterrâneo referencial do milagre, não exige sofrimento, nem sacrifício, apenas fé – seu minimalismo é uma decorrência natural de visão de mundo, e não um dogma arbitrário: fator que torna seus personagens muito mais críveis e o milagre muito mais pujante e verdadeiro. Tarkovski recorre ao sacrifício, mas o sacrifício não é doloroso – é decorrência do milagre (Alexander, de O Sacrifício), ou uma verdadeira necessidade quando se torna a única forma possivel de comunicação entre os homens (Domenico, de Nostalgia). Nunca um processo dolorífico de amor transviado em psicose. O silêncio de Deus é mais belo do que a esquisofrenia de Bess. E a igreja sem sinos tão rígida quanto forçar o gôngo goela abaixo.

E o maior perigo desta espécie de visão do amor é seu desdobramento em Dogville, quando deixa de acreditar em si mesmo e passa a verter a seu polo radical oposto, o fascismo. O perigo é enorme, de fato. Se fosse Platão, baniria Lars Von Trier de minha república. Mas não vou condená-lo absolutamente. O filme começa bem, mas desanda. Se não houvesse milagre algum, e os sinos jamais ecoassem, Lars Von Trier teria feito um belo filme.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Últimos dias




Alguns frames da razão pela qual nestas últimas semanas não tenho postado direito (Estas vêm de um DVD de baixa qualidade. Assim que tiver, trocarei por imagens de melhor qualidade). Dificuldades de me organizar para escrever com este filme em processo de finalização. Também me preparo para outras coisas: um projeto de mestrado, um artigo a ser escrito para um livro, etc... Em breve, vou postar um texto que estou escrevendo sobre o catalão Albert Serra. E vou tentar, na medida do possível, continuar escrevendo para cá constantemente.

Estas imagens são frutos da obsessão que me envolveu desde o começo do ano. O processo já está no fim, e isto é tão estranho. Restou o vazio enorme de sua completude. Acho que estou em processo de luto, para usar o termo freudiano. Na realidade, acho que estou sempre em processo de luto, sempre lutando em vão contra o princípio da realidade e sendo continuamente derrotado. Talvez isto seja um pouco triste. Mas a sublimação é bela e deixa seus frutos, e talvez vale a pena o trabalho de luto póstumo, por vezes necessário. Tento não decair em melancolia e auto-anulação. E sempre me pergunto em que medida todo este processo pode ser diferente. Pode ser diferente? Isto, também, nunca sei. A verdade é que, ultimamente, tenho tentado lembrar do que eu sei, e quando o tento, tenho a impressão de que sei muito pouco ou quase nada. E não se trata de melancolia, nem insegurança. É outra coisa que não sei denominar.

Tentei assistir meu próprio filme com algum envolvimento, e senti que ele tem uma força enorme que o move, porém muitas arestas ainda a aparar. Fiquei comovido na cena do menininho na estação. Chorei, com sinceridade, na cena do cinema. Odiei cada erro embaraçoso meu que reconheci. Tive orgulho da força que as imagens, situações e personagens tem, e da coesão que existe no todo. Tive medo da exigência que faço (ou confiança que tenho) no espectador. Exige muita atenção, entrega, mergulho. Espero que os frutos estejam à altura desta exigência, e não seja tudo mero artifício. Compreendi o filme de outro modo. Talvez do mesmo modo, porém em outros termos. Compreendi melhor os personagens, as situações e o mecanismo das opções artísticas. Lembrei que ver filmes é sempre bom. Entendi, sobretudo, onde quero chegar com tudo aquilo. E me surpreendi muito.

Para não fazer uma postagem inócua, deixo um trecho de Ricoeur que me lembrou o personagem central deste filme. O trecho foi extraído de um livro chamado A memória, a história, o esquecimento, uma das poucas leituras que consegui manter nestas últimas semanas tão ocupadas:

"O cerne do problema é a mobilização da memória a serviço da busca, da demanda, da reivindicação de identidade. Entre as derivações que dele resultam, conhecemos alguns sintomas inquietantes: excesso de memória, em tal região do mundo, portanto, abuso de memória – insuficiência de memória, em outra, portanto, abuso de esquecimento. Pois bem, é na problemática da identidade que se deve agora buscar a causa da fragilidade da memória assim manipulada."


Até a próxima.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Estudo #3: O Cisne


Recolhes tua mão no princípio da chuva.
Como ontem, teus olhos se furtam do amanhã.
Com que medo inexorável de nos perdermos
persistimos em existir em limites cinzentos.
E donde pode provir alguma coragem?
... se já não podemos mais sonhar.
Restou-nos não mais que um solo remexido.
Uma terra sem promessas, cujos frutos
nascem sempre os mesmos, à cada estação,
à cada madrugada os lastros suportamos.
Estamos prontos, para sempre, a permanecer
na eternidade do presente; no esquecimento,
escravos do hábito de pintar esmaecido
os pigmentos mais vivos daquela catedral.
E a voz assimétrica do canto nos pede
um mergulho incomedido ao amanhã. Mas como?
Como o fariamos sem matar ou morrer?

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Estudo #2: A permanência de um sorriso


A permanência de um sorriso? É o que nos resta
quando somos menos que ontem. Quando as cinzas
brotam céleres dos ventos, e as brasas aquiescem
outra vez nos pinherais. Viajamos por ladrilhos
costeiros, e vivemos o afã de nos jogar
na extensa direção do calmo mar
em que se encerra o bruto estado da existência.
Mas um corpo já não é mais que uma criança,
e os olhos já são menos capazes
de distinguir os borrões obnubliados
que erigem da chuva de cada entardecer.
Nas sarjetas da estrada, como infantos perdidos,
sentamos, e ainda assim, não se explica o por quê,
q'entre os dentes de mel insiste
a permanência de um sorriso
tão breve e jovial.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Estudo #1: Estrela do Norte


Tranquei no porão uma quimera de estimação
E inda ouço teus gritos enquanto o naufrágio
Intumesce de febre as náus.
Enxarcando de peixe o chão.
Violando a estabilidade tênue
D´um cardume e seu adágio.

Pudera a Estrela do Norte...
Pudera a manhã nascer sem teu brilho cair.
Antes de um suave esformigado no peito.
Antes que tua calma mostrasse
que não tens os mesmos defeitos
de um pescador solitário.

E na madrugada serena,
expiro os candelabros,
e um relento ameniza o cansaço.

Salve, Manhã! Da Estrela do Norte
nenhum brilho resta, que pena,
senão o brilho desta lágrima eterna,
escorrendo e somando
mais uma gota salgada no mar.

domingo, 16 de agosto de 2009

O processo de Moscou


Assisti Moscou há poucas horas. Assim que saí do filme, lembrei de uma situação que aconteceu há um tempo com alguns companheiros do cineclube: após uma sessão de um filme do Coutinho, estavam vagando pela rua e viram o próprio. Contaram-lhe da coincidência, e Coutinho foi suscinto e irônico na resposta: - O acaso é Deus. Fiquei me perguntando se também não foi o acaso um dos agentes definitivos que fizeram de Moscou um remédio às crises que eram o ponto de partida do projeto. Pois no filme de Coutinho, há outros dois co-diretores: Tchecov, escolhido por Coutinho como uma espécie de espelho; e Enrique Diaz, o outro ângulo da tríade que entrou em cena ao acaso.


Ao que me parece, o projeto consistia em filmar um processo inacabado da encenação teatral da peça Três Irmãs de Tchecov. Em uma das sequências iniciais do filme, a primeira reunião do projeto nos lança estas regras. Coutinho faz questão de esclarecer que escolheu a peça de Tchecov, porém foram os atores que escolheram o diretor teatral Enrique Diaz. E diz: “não quis lhes impôr nada”. Diaz, por sua vez, diz em sua primeira aparição no filme, enfatizando as palavras de Coutinho, que o projeto é tentar encenar em três semanas, um tempo mínimo, até onde puderem atingir da Três Irmãs.

Uma das tensões fundamentais da obra de Tchecov pode ser inferida da cena final da encenação de Tio Vânia, do argentino Daniel Veronese (Espia uma mulher que se mata), onde Sonia e Vânia trabalham – a primeira acredita que este trabalho é digno, pois é um exercício que os levará a algum lugar (o que existe é o sonho); o outro, derrotado, questiona se este trabalho o conduzirá ao ideal que nele existe (o que existe é o que está aqui). Coutinho se utiliza desta tensão para espelhar uma crise da Arte e do Cinema – possivelmente, tomando em conta que seu filme anterior Jogo de Cena, como Bernardet indica, é uma corajosa desconstrução de sua carreira de documentarista, o projeto ecoa mais amplo ainda, isto é: encontrar sentido em seu próprio ofício de documentarista, em seu próprio trabalho. Para onde levar o documentário após a auto-evidência de seus limites? Desmontadas as representações, para onde levá-las? Moscou é um lugar onde supostamente estivemos no passado, antes de irmos a uma cidade em crise, e para onde desejamos retornar no futuro – o passado e o futuro; de onde se vêm e o que se busca. Mas sabemos que não há tempo o suficiente para se atingir Moscou, isto é, não há tempo o suficiente para Enrique Diaz encenar As Três Irmãs. Tem-se apenas três semanas. Podemos parar por aqui – A crise deste projeto é almejar uma perfeição sabendo que o tempo é limitado; a eternidade em uma vida; Tchecov faz desta crise a tensão fundamental da ideologia comunista/modernista russa. Coutinho, por outro lado, faz desta a crise do aparato cinematográfico: os limites da câmera em captar o tema; senão uma crise ainda mais íntima e sensível da própria existência: os limites de uma subjetividade em se comunicar com outra, a insuficiência do discurso; e uma crise do próprio ofício: qual é o sentido de se agir, então?

Jogo de Cena é o projeto de uma desconstrução levada ao limite. Moscou, por outro lado, é um projeto de construção (Enrique Diaz, novamente citando Coutinho, deixa isto claro). Esta construção, contudo, traz consigo a certeza de que nunca atingirá seu ideal, pois não há tempo o suficiente para isto. Lançar este projeto é, por um lado, uma genialidade incomparável. Por outro, se Jogo de Cena exigiu coragem em se desconstruir, Moscou exige uma coragem ainda mais absurda em lançar-se o desafio de almejar se construir. É como um último suspiro de quem indaga acerca de sua própria possibilidade de existir. O resultado é, para mim, um dos documentários mais esplêndidos do século. Acaso ou não, fato é que Enrique Diaz caiu como uma luva para jogar este jogo.



Vi apenas uma peça de Enrique Diaz (A gaivota, tema para um conto curto), e a experiência foi forte o bastante. Sua familiaridade com o universo de Tchecov é anterior ao filme de Coutinho. Também, como o próprio afirma, seu trabalho gira em torno da desconstrução da representação e da construção do personagem, exercício também presente em Moscou, quando os atores, num primeiro momento, narram os próprios dramas (menção direta de Coutinho a jogo de cena?), e num segundo, buscam encenar o drama alheio. Alguns dos projetos de Diaz têm em si mesmo a marca de ensaio de uma peça. A própria peça é o ensaio de um grande clássico, uma busca dos atores de encontrarem uma natureza mais íntima daqueles personagens e a representarem, como que quase de improviso. Esta representação, porém, nunca é plena, isto é, os atores não “se tornam” os personagens. Pelo contrário, há uma variabilidade, fluidez e troca constante entre atores e personagens – os personagens surgem como forças presentes almejadas pelos atores em cada ato de representação, porém nunca atingidas, sempre embarreiradas pelo limite da representação. Enrique Diaz reconhece que existe um limite do ato de representar, e que um ator nunca se torna seu duplo perfeito. Daí, o seu caráter de ensaio.


Moscou segue a mesma tônica. É um filme de ensaio. Um filme de processo. A palavra ensaio nos remete à idéia de algo inacabado, ainda a ser trabalhado exaustivamente à perfeição da representação. A perfeição da representação, na peça de Tchecov, é a capital da Rússia. Mas nossa condição de existência não é Moscou – o limite está presente desde o princípio do jogo: para Diaz, o limite de tempo; para Coutinho, o limite do aparato. O processo é imperfeito, graças às limitações. Porém, é o único processo possível de construção. Coutinho faz seu discurso com brilhantismo refletindo-o em seu objeto, e em seu método. Este reconhecimento de limites perpassa o filme inteiro, lançando-se para diversos âmbitos: a memória, o discurso, a imagem.

Qual é o sentido de se construir algo, se a limitação impede a perfeição? Se tudo que resta é o processo? Para isto, é necessário dar-se a conhecer o que emana do próprio processo. Por isto a necessidade de Coutinho em estabelecer esta espécie de jogo. E o que emana do processo é algo de inefável – do processo é que temos um vislumbre dos personagens. Da peça de Tchecov. Do tom inebriante de Enrique Diaz. Do vigor e da beleza que capturamos aqui e alí das construções de Coutinho. Longe de um formalismo, trata-se de ouvir se a tal Moscou ecoa no processo instaurado. Em síntese, trata-se de observar em que medida os atores foram capazes de explorar seus personagens dentro de um rigor ensaístico, e se Diaz foi capaz de construir, neste mesmo processo, uma força estética e uma aproximação de qualquer ordem com a peça de Tchecov. Tal qual nas peças de Diaz, onde o espectador tem espaço privilegiado, e é figura decisiva na compreensão ou não do processo, apenas este pode julgar se desta tentativa de se aproximar de um tema, ou de um conjunto de personagens, lhe irá advir quaisquer epifanias sobre a natureza íntima destes.

O testamento final de Coutinho é de um entusiasmo absoluto com sua arte. Uma crença que seu ofício é válido simplesmente por que, em alguma medida, é capaz de atuar sobre um espectador. O processo é válido pelo que nele subjaz. Como afirma Diaz na conversa inicial com o elenco, “ainda que saibamos que não atingiremos o resultado final, iremos trabalhar com seriedade, sempre visando o resultado final. E veremos até onde podemos ir.” O tom é esperançoso. Poderia ser o último filme de Coutinho. Mas este reconhece a incessante necessidade de se trabalhar e de se vivenciar o processo, sua validade histórica, que está para além da possibilidade ou não de se atingir a capital russa. Uma réplica à tensão de Tchecov. Ao mesmo tempo, uma ode ao cinema. Um confiança que o homem ainda deve viver, ainda que com nostalgia e expectativa, ainda que não seja Deus. E que o documentário ainda tem caminhos a serem explorados, apesar da condição existencial de distância entre os homens, e a falibilidade do discurso, da memória e da imagem.

Moscou se insere em um espaço raro na história do cinema documentário. É um elixir quando este tipo de cinema já começa a parecer desinteressante. É também o melhor filme que vi de Coutinho.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Duas tábulas rasas


Assisti a encenação teatral de Moby Dick, dirigida por Aderbal Freire Filho, há poucas horas. Visto ter errado nas especulações que fiz sobre a peça no texto que escrevi sobre o livro, seria justo tecer uma breve reflexão sobre as excelentes resoluções que o diretor encontrou para os impasses que havia indicado. A eliminação do narrador Ismael não resultou em uma hipérbole shakesperiana centralizada entorno da figura de Ahab. Pelo contrário, se tornou uma reflexão sobre o mecanismo da encenação teatral. O resultado é uma adaptação, na maioria das medidas, de esplêndida fidelidade com o que é um dos livros mais enigmáticos da história. O elogio é duplo: além de tornar o problema de adaptação em uma qualidade, soube abarcar a complexidade da questão de Melville sem desbancar para a facilidade de leitura suposta em um clássico. Aderbal Freire Filho conseguiu ser “melvilliano”, senão por um único detalhe. Porém, talvez o detalhe mais fundamental. Se não chega a ser um erro, é ao menos um indicativo de algo a ser compreendido. É isto que comentarei.


Primeiramente, tentemos supor o processo de transposição do livro à peça: a eliminação do personagem de Ismael, o personagem-chave do livro, é a eliminação da figura de um narrador incompatível com a arte teatral. Concepção magistral: o teatro é uma arte de encenação, uma arte representativa onde (relembrando a dualidade clássica mostrar-narrar) não há espaços para um narrador. É preciso encontrar seu equivalente. Aderbal Freire Filho nos propõe que os equivalentes teatrais do Ismael literário são os próprios atores, não estes em seu ofício, mas estes enquanto indivíduos livres e aptos a representar. No fundo da representação há uma figura humana. Execução magistral: Temos nas primeiras cenas um leve endereçamento a isto - o princípio do livro que trata da chegada de Ismael é riscado, visto que este não existe na peça, para, ao invés disto, nos deparamos com um processo visível de construção dos personagens. Mas, tal qual o livro, é preciso aguardar até o prólogo para que tudo isto se evidencie. Por trás da representação estão Ísio, Orã, André e Chico.

Este processo de construção, perfeitamente transposto, remete à narrativa de Moby Dick. O capitão Ahab, trágico shakesperiano, é obcecado por se vingar da grande baleia branca que arrancou sua perna. Melville, e também nisto a adaptação é feliz, jamais deu a indicar exatamente o que é que a baleia representa. Para além disso, parece nos exigir que a interpretemos de algum modo, que lancemos sobre ela alguma representação, quando, tudo que sabemos, de fato, é que a baleia resiste com violência a qualquer espécie de controle ou conhecimento. Como já havia dito, a pretensão de Ahab é a pretensão de conhecimento e controle do que é incogniscível e incontrolável. O capitão trágico rejeita sua condição humana e desafia os deuses. Deste conflito, apenas Ismael sairá ileso. Ismael reconhece os limites do homem e os limites da representação.

A peça desenha o mesmo conflito de cabo a rabo. Põe em cena as digressões, explora as nuâncias literárias por um lado. Por outro, reconhece os limites da literalidade. Faz dos livro botes de caça que a baleia irá destroçar. Ergue a bandeira vermelha com o gavião, talvez o símbolo maior das pretensões que Melville aponta estarem a se afundar no confronto com a baleia branca. Apenas um mero detalhe que lançará a peça em um sentido distinto do livro.

Há uma diferença leve entre o tom que Aderbal imprime à peça e o tom que Melville imprime ao livro. Ainda que ambos sejam polivalentes, indo da ironia à dramaticidade, da tragédia ao cinismo – é no grau de variação destes tons que há uma diferença um tanto brusca. A peça os realça, o livro os ameniza. Os atores-narradores da peça ora representam a tragédia, ora a comédia; ora um personagem, ora outro – tudo levado ao extremo da representação, por vezes até caricatural. Esta pluralidade é uma técnica conhecida no teatro contemporâneo, e tem um princípio básico que fica evidenciado na peça – a representação pode morrer, porém o ator não morrerá. E o homem é uma tábula rasa, um sem-número de possibilidades que à cada instante, encena uma delas. Desde as desconstruções do humanismo, tendo seu ápice nas filosofias existencialistas, o homem foi destituído de suas faculdades e lançado a um esvaziamento absoluto. O instante é enfatizado. A variação de tom é radical se num momento podemos ser trágico, e no outro cômico.

Ismael não é trágico, nem cômico, é outra coisa. Seu tom amenizado não é plural, mas uno. Ainda que a variação exista, ela encontra seus limites, pois remetem sempre à estílistica do mesmo narrador. A tragédia é um auto-martírio do homem ao tomar consciência do limite de sua condição perante os deuses. A comédia, uma auto-ironia de si mesmo, quando levar-se a sério enquanto criatura humana é “trágico” demais. E se a peça vai de um extremo ao outro, de momento em momento, o caminho de Melville é uma terceira via: o homem é também uma tábula rasa, uma variação de tons e digressões. Porém, esta tábula rasa não funciona através de um processo de construção e desconstrução de representações à cada instante, mas ecoa através do tom uníssono de Melville, nunca demais trágico, nunca demais cômico. E por mais que reconheça os limites da literatura ao tentar dar conta do tema da baleia branca, não põe de lado, destrói ou ridiculariza o conteúdo que lançar-se nesta empreitada contêm. Ao contrário disto, é um estudioso dedicado e entusiasmado com a literatura, a cetologia, e todas as espécies de conhecimentos frágeis do homem, pois são estes conhecimentos frágeis que nos são possíveis, e estabelecer diálogo com eles em uma cadeia de trocas, em uma dialética, com verdadeiro entusiasmo e paixão, é o que une os homem em uma mesma condição – uma condição que não deseja ser maior que os deuses, porém tampouco despreza a si mesmo. E que acredita em sua própria potência de comunicação. No fundo, nem cômico, nem trágico.

A desconstrução da representação não deveria visar um esvaziamento, mas um encontro do homem com uma natureza íntima que subjaz na representação. O prólogo da peça parece compreender este princípio. Porém, resta que vejamos esta natureza íntima ecoar no tom da peça. Se são os atores, enquanto seres humanos, que se encontram no fundo da representação, e se no princípio e no fim da peça isto é esclarecido, falta que esta condição perpasse todo o movimento da peça, dando-lhe unidade. Fico me perguntando se não seria o caso de Aderbal subir também ao palco...

A diferença entre duas tábulas rasas – uma tem como medida a figura uníssona de Ismael; a outra, sem esta medida, faz da pluralidade uma variação de gêneros e representações. A arte contemporânea, influenciada pelas filosofias de desconstrução, de um modo geral, opta pelo segundo caminho.

Mas a façanha já está realizada - A peça soube pôr em cena os dramas de Ahab e nos propõe uma solução próxima, porém distinta, da resolução de Melville. E repito: soube, sobretudo, adaptar um dos clássicos mais enigmáticos da história sem deixar perder a latitude da obra, e sem cair nos caminhos fáceis possíveis. O que nos resta? Um elogio à excelência de Aderbal Freire Filho. E uma veneração à genialidade de Melville.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Glauco

Confesso que, relendo A República, senti admiração por esta figura mais ordinária, talvez inventada por Platão para justificar o discurso de Sócrates, para dar ao discurso uma aparência de maiêutica, quem sabe. Aqui vai uma seleção de seus melhores momentos:

- É verdade.
- É evidente.
- Estou de pleno acordo contigo.
- Muito justo.
- Não há dúvida.
- Nada mais certo.
- Percebo.
- Com toda a certeza.
- Com efeito.
- Necessariamente.
- Acordado, sem dúvida
- É incontestável.
- Efetivamente.
- Boa notícia!
- É forçoso que assim seja.
- Atento, e vejo que falas verdade.
- Como sempre, tuas palavras tem lógica.
- Acredito que não pode ser de outra maneira.
- Essa observação é inteiramente exata.
- Considero-a prudente nas suas deliberações.
- Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.
- É evidente que chegará a esta conclusão.
- Sim, por Zeus!
- Por Apolo! Que maravilhosa superioridade!

Por mais que soe como piada, a postura de Glauco é admirável. Um discurso verdadeiro só é verdadeiro na medida em que é identificado pelo outro como parte interior de si. Glauco está aberto ao mundo, disposto a ouvir e interessado no que alguém tem a lhe dizer. Por vezes, faz perguntas, incentivando Sócrates a expressar-se mais justificadamente. Por vezes, supreende-se ("Por Apolo!") quando parece ter uma epifania ou compreender uma conclusão válida. E permite que Sócrates coloque e justifique seu ponto-de-vista sem ameaçá-lo ao ver-se contrariado, ou fechar os tímpanos para manter suas certezas - desenvolve com Sócrates a dialética mais suscinta, sem conflitos egóicos. Também não é um seguidor - exige uma explicação de Sócrates ao invés de ter fé absoluta em suas opiniões de princípio. Ao contrário de um Polemarco, Trasímaco ou Adimanto - quem sabe até do próprio Platão, em alguma medida.

Admiro Glauco. Queria que Glauco também tivesse escrito sua versão da República... O primeiro documentariasta? Hoje em dia, acho que deviamos lembrar de Glauco com mais carinho, pois só quem sabe que nada sabe pode ser verdadeiramente simples. E as vezes, estamos mesmo derrotados e cansados. Falta-nos simplicidade em nossa relação com o mundo, talvez por que a gente ache que saiba demais e temos pouco o que aprender.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Visão da Alvorada


Posso ver-te a me esperar, quando a ave costeira
entoa à madrugada tão serena elegia. Fulgura à vista,
Saña-cinzenta, quais assobios, em sobrevôos nas gramíneas
não recordam, a mim, a capa alaranjada que nos encobre
de tão ardente alvorada.

Vejas tu, querida, o calmo chacoalho
das ametistas, o amor dos órfãos e dos artistas,
as réstias violáceas detrás dos montes, de um Sol
turvando o mal, lançando nos campos um vento litoral.
E o esplendor pontual de tudo que existe
neste quarto, antes que os sonhos morram,
antes que o frio seja visceral, que a molúria
de existir nos cause fastio de espírito, que
venhamos a esquecer o sentido
impresso em cada coisa, ou
o quão triste, o quão fáustico,
é o eterno retorno do temporal.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Sobre Nomes e Números


Quando a alma se rodeia de espectros
dum mundo no qual existo em exílio
uma criança abriga um rosto tão repleto
de remelas de medo da tesura.

Torniquete sagrado das manhãs,
há mais que um azul fustigado
no parto das coisas belas? Há mais
que luzes que não se extinguem breves?

Quando a alma se rodeia de espectros,
ansioso, a distância calculo:
São mais do que dois, menos que um.
Mais do que dois, menos que um.

... e todos dançavam.

Mortas incertezas são dúvidas
de q´as vagarosas ondas inda quebram,
que, da lira, inda ecoa um remédio,
que, no mundo, ainda habita a ternura.

E quando à madrugada, com teu sibilo doce
orfêica me trouxeste teu sulfrágio,
as perenes recordações, não mais
q´amarguras de um menino pernoitado.

Donde vão, fantasmas celestes, com
teus números minuciosamente orquestrados?
São mais do que dois, menos que um.
Mais do que dois, menos que um.

... e todos dançavam.

Quando a alma anseia por completo,
talvez seja terrível o que sois. Mas como
reverbera a lira sendo dois?
Pretendes ter mais nomes que cidades?

Quando a alma se rodeia de espectros,
e a visão se lança ao mundo exilada,
as palavras morrem aos poucos...

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Reminiscências




(Re)visitando um lugar onde passado e presente se encontram.
Canção de infância revigorada. Ainda vive, tão diferente.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Mérito de Melville


Um mérito memorável de Melville é provar que as digressões literárias podem adquirir, além de uma força estética, ou de uma construção temporal, um caráter narrativo ou representativo. Ao menos para mim, é estranho pensar que Moby Dick é uma história sobre a tragédia do obcecado capitão Ahab, quando, desde a primeira página, e pela maior parte do livro, o que temos não são senão digressões do narrador Ismael. O ato é deixado em segundo plano, mas isto não ocorre em detrimento de uma exaltação das sensações possíveis em um conjunto de digressões. Pelo contrário, as digressões são tão representativas ou mais do que os atos. A tragédia de Ahab tem seus atos obnubliados, ou melhor dizendo, interessam apenas na medida em que constituem um contraponto ao verdadeiro interesse de Melville – uma literatura de digressões, referências e trocas. O mérito de Melville é provar através da literatura que a arte estética e a arte representativa não se contrapõe – apenas constituem dois lados de uma mesma mo
eda.

Martelo na tecla: Moby Dick não é um livro sobre Ahab, mas um livro sobre Ismael. O personagem central não é o capitão, apesar de ser ele o ditador de todas as ações no livro. Em uma obra onde as ações não servem de base para as digressões, de que nos serve a ação própriamente dita? Uma literatura onde não é em cima de um conjunto de atos que a escrita dilata ou contrai o tempo, explora a ambiência e os diversos sentidos possíveis; onde o acontecimento presente não é o único gatilho possível para a digressão; onde a escrita não tem amarras factuais, mas seu próprio espaço no mundo. – uma anti-tragédia? Mas se as digressões não visam sensações? As digressões não são fugas ao tema, mas um aprofundamento que constitui o próprio tema. O tema de Melville é, desde o título, rigorosamente claro: Moby Dick. Toda digressão remete somente a este mesmo objeto, de modo que a escrita persiste em não fugir à representatividade. – uma anti-estética?


A chave da obra de Melville não está em Ahab, o capitão obcecado pela enorme baleia branca. Sendo um pouco rigoroso, diria que Ahab é um personagem antiquado – uma figura shakesperiana, inclusive em seus monólogos. Um capitão trágico que centraliza entorno de si as ações a serem tomadas, visando sempre sobrepôr-se à figura divina e incontrolável que é a baleia. Não é senão o símbolo do narrador trágico, que guia o navio Pequod em direção à sua própria ruína ao enfrentar braço-a-braço com a grande baleia branca, símbolo do incompreensível, deste outro cujo modo de ser está para além de nossa compreensão, do objeto de toda busca e investigação que funciona apenas através de suas próprias leis. Ahab estuda seus movimentos, estuda seus trajetos, tenta compreendê-lo para adquirir controle sobre ele. Para derrotá-lo e ter poder sobre o destino. A obsessão deste narrador trágico é sua vingança: fez da vida que subjaz ao enorme corpo do Leviatã o seu inimigo, pois perdeu para ele sua perna. É a perna que perdeu, orgão de locomoção, que define o sentido dos movimentos. Um narrador de atos obcecado por se vingar de um objeto que lhe é incontrolável, pois este mesmo objeto lhe tirou o orgão que lhe daria algum rumo. Um ditador lançado no imprevisível da existência, buscando tomar controle dela, lançando sobre uma baleia branca suas representações, consciente de seu destino irremediável. – eis o desenho que Melville faz do capitão Ahab.

É verdade – Ahab é um mistério. O maior mistério de Ahab não se dá por nossa incompreensão de seu caráter, pois seu caráter é muito bem esclarecido. Mas, pelo contrário, nasce da consciência que Ahab tem de sua própria condição. Ahab não é apenas um obcecado em sobrepôr-se à natureza. É um obcecado que compreende sua situação e se vê sem possibilidades de transformá-la. Eis o seu grande mistério – por quê? Por que Ahab permanece Ahab? A isto, o livro não nos responde.

What is it, what nameless, inscrutable, unearthly thing is it; what cozening, hidden lord and master, and cruel, remorseless emperor commands me; that against all natural lovings and longings, I so keep pushing, and crowding, and jamming myself on all the time; recklessly making me ready to do what in my own proper, natural heart, I durst not so much as dare? Is Ahab, Ahab? Is it I, God, or who, that lifts this arm? But if the great sun move not of himself; but is an errand-boy in heaven; nor one single star can revolve, but by some invisible power; how then can this one small heart beat; this one small brain think thoughts unless God does that beating, does that thinking, and not I. By heaven, man, we are turned round and round in this world, like younder windlass, and Fate is the handspike.

Mas repito: a obsessão de Ahab não é a temática de Moby Dick. Também não é Melville um Shakespeare moderno, e tampouco o livro uma tragédia. E sua escrita não é somente uma sequência de atos cujo desfecho está definido de antemão. Pois a ação e representação constituem apenas um lado da moeda. Moby Dick é um prenúncio da morte de um ditador, mas também a fundação da redenção de um órfão.


Se o trágico shakespeariano não nos deixa um sobrevivente, o apocalipse de Melville ainda permite um Noé – é Ismael, o narrador que sobreviveu o percurso danado do Pequod para relatar os acontecimentos. Por não ter atuação direta nos eventos que sucedem no percurso do navio, sua presença é aparentemente oculta. Mas surge marcante na ordem do discurso; na intertextualidade, no modo de composição do livro – é através disto que conhecemos, de fato, o caráter deste personagem central. Pois Ismael não é um mero narrador de Ahab, um acompanhante da trama, tal qual Watson está para Sherlock Holmes – na ordem do discurso, esta diferença fundamental acontecerá exatamente pela estrutura em digressões.

Antes da histórica apresentação (“Call-me Ismael”), o livro de Melville nos lança definições e modos de escrita em diversas línguas do termo “baleia”, acompanhado de um conjunto de citações extraído de diversas obras da literatura universal (da ficcional à filológica) onde há, em algum sentido, uma referência às baleias. E as digressões, desde então, serão a matéria-prima do livro – digressões sobre baleias, sobre a arte da caça, sobre a arte de navegar, ou até sobre a cor branca. Mais impressionante ainda é que estas digressões não sejam devaneios, mas tem em sua substância um caráter diretamente representativo, senão simbólico – longe de um puro esteticismo, as digressões estão sempre a visar o tema, sempre a remeter a ele, simbólica, estética ou representativamente. Há uma identidade inaparente entre Ahab e Ismael: são ambos obcecados pelo mesmo tema. Porém, Ismael não é um agente com um destino final. É um dialético, que circula o tema e extrai dele digressões, mantendo-se sempre em relação ao mesmo princípio. Um entusiasta. Um homem apaixonado, e não vingativo.

A obsessão de Ismael é o que sustenta, envolve e renova dentro da literatura de Melville e, parece, nos relembra alguns princípios básicos da dialética: o tema não é um fim a ser exaurido, mas um princípio a partir do qual nasce toda digressão. A escrita visa algo, porém não faz deste visar seu envio, faz deste visar um ponto de partida que deve, à cada instante, ser renovado, revigorado – o tema é uma força constante que age sobre cada digressão.

Uma literatura de permutações e aberturas. Se fundamenta na troca de experiências. Ismael, por mais que erudito, “lança-se ao mar como um marujo, e não capitão”. Permite ser tocado e transformado pelo outro. Torna-se companheiro de Queequeg, o selvagem de estranhos rituais que, no primeiro contato, lhe ameaça de morte. Um trato de dádiva e recebimento, receber e retornar, ler e escrever. Isto, contudo, sem jamais perder o entusiasmo. Pois a dialética perderá seu rumo caso não se mantenha constantemente regida pelo mesmo princípio. Por esta possibilidade de trocar experiências é que Ismael será o personagem redimido: será salvo pelo caixão de Queequeeg, transformado em bote salva-vidas por seu capitão.

As constantes referências à literatura universal, além de indicar de que leituras nasceu o livro de Melville, remetem a este mesmo princípio. A escrita, de Homero ou Platão a Rabelais e Montaigne, ainda existe como algo vivo, como uma experiência a ser transmitida a cada leitura. É nesta cadeia de troca de experiências que Ismael-Melville deseja se inserir. A grande baleia branca, o leviatã, não é algo a ser conquistado em plenitude, pois sua natureza sempre nos escapa de algum modo. O que nos resta é um ato descritivo, de aproximação e simpatia. Em suma, é no processo de troca de experiência que há um crescimento do homem – é este o verdadeiro processo democrático, humanista e moderno.

Deste embate entre a obsessão de Ahab e Ismael nascerão princípios sociológicos, antropológicos, e metáforas das mais diversas ordens, da história da Inglaterra e dos EUA, da formação do liberalismo, do fanatismo, entre outros. O que me interessa, sobretudo, é evidenciar a diferença de comportamento.

Mas Ahab e Ismael não são apenas contrapontos. Algumas coisas são deixadas em aberto: Existiria o entusiasmo de Ismael, não fosse este suscitado por seu capitão? Haveria ele de se interessar por Moby Dick? Se não é um agente, um capitão, seria capaz de navegar na direção do grande Leviatã? O quão não foi a obsessão violenta e ditatorial de Ahab uma fagulha, uma abertura à possibilidade da obsessão jovial de Ismael? Ahab morre. Ismael vive. Mas haveria um Ismael sem Ahab? O quão, ao invés de meros contrapontos, não são Ismael e Ahab, no fundo, complementos?

Confesso que sofri um certo desânimo ao descobrir que, na encenação de Moby Dick, do Aderbal Freire Filho, que estreiou na semana passado, o personagem-narrador de Ismael-Melville havia sido suprimido. Isto quer dizer que a peça se fundamentará na tragédia de Ahab, e que as digressões talvez não atinjam pleno sentido. Sabendo que Aderbal Freire Filho montou Hamlet recentemente, não é difícil advinhar que a peça irá no sentido de uma tragédia shakespeariana. Por um lado, a obra perde sua latitude. Por outro, espero que, sendo Ahab o foco central, que a obra obtenha sucesso em responder à pergunta que Melville não respondeu: Por quê, conhecendo sua condição, Ahab permanece sendo como é? Se bem que é difícil surgir uma explicação do capitão Ahab melhor do que o personagem de House (sim, do seriado. Tenho preconceito com seriados, com TV em geral – não assisto. Mas este deve ser assistido de cabeça a rabo, sobretudo pelos amadores de Ahab). Até assistí-la, fico na torcida. Quanto à adaptação cinematográfica de John Huston, já esta prefiro nem comentar.

Confesso, também, que é com Ahab que tenho maior identificação. Sua força e sua solidão trágica, sua ambição e sua obsessão ao mesmo tempo calculista e descontrolada:

When I think of this life I have led; the desolation of solitude it has been; the masoned, walled-town of a captain´s exclusiveness, which admits but small entrance to any sympathy from the green country without - oh, weariness! heaviness! Guinea-coast slavery of solitary command! - When I think of all this; only half-suspected, not so keenly known to me before - and how for forty years I have fed upon salted fare - fit emblem of the dry nourishment of my soul.

Mas repito, pela última vez: Moby Dick não é um livro sobre a obsessão de Ahab, mas sobre o narrador Ismael-Melville. Não sobre monólogos, mas sobre digressões. Sobre seu entusiasmo e sua paixão pacífica. Sem Ismael, uma repetição hiperbólica de antepassados.


E foi também Ismael-Melville que transformou a minha vida de maneira tão verdadeiramente íntima nas últimas semanas. Sua sensibilidade, carinho e tranquilidade para com os objetos de seu entusiasmo. Sua capacidade de permutação. Em realidade, um órfão mais vigoroso do que qualquer filho. Ou do que qualquer pai.


sábado, 25 de julho de 2009

A Força Bruta de Ford


Através da conquista do Oeste, uma temática dominante em grande parte da obra de John Ford, em The man who shot Liberty Valance, o diretor norte-americano esboça um tratado social – o que está em jogo é tanto a passagem da “liberdade valente” para a ordem social, quanto as bases sobre a qual se fundamentou a nação de Ford. A tradução veio inexata (chegou ao Brasil como O homem que matou o facínora), e além disso, a sinopse na caixa do DVD da Paramount responde de antemão uma das dúvidas fundamentais deixadas pelo filme. Re-assisti esta péssima cópia recentemente e, para além deste tecido político que narra detalhadamente a passagem de um estado a outro, em um debate que se insere na tradição de discussão sobre os fundamentos da sociedade, terminei o filme tentando explicar para mim mesmo em que ponto exatamente o filme me arrebata. É isto que desejo comentar.



O desenho que a trama traça é milimétrico desde o princípio: um senador retorna a uma cidade do oeste para o enterro de um antigo amigo. Um jornalista insiste em saber quem é o sujeito, que homem anônimo interessa ao lendário senador. É o gatilho para um flashback que irá rever o que foi o processo de conquista do Oeste e a instauração da democracia na América. Em princípio, o filme sugere uma dualidade entre Random Stoddard (James Stewart), jovem advogado que vai ao oeste no intuito de domá-lo através da lei, e Liberty Valance, o inviolável e selvagem durão que assombra com violência a região. Random vem instaurar um estado de civilização baseado em educação, organização constitucional e eleição, e depara-se imediatamente com a impossibilidade de realizar esta tarefa única e simplesmente através de seus próprios recursos. Pelo contrário, é obrigado a praticar tiro e recorrer à violência para impor a lei sobre Liberty Valance. Primeiro ponto: o sistema constitucional não se instaura a partir de seus próprios princípios, mas apenas a partir da tomada de poder com referência a um sistema anterior, no caso, o respeito adquirido pela violência (talvez o termo ideal seja valentia) do Oeste. Apenas através deste princípio é que Random pode enfrentar Liberty. Na formação da democracia americana, foi necessário um ato de violência - um conflito, por um lado, entre dois modos de vida, e, por outro lado, entre estado social e estado de liberdade selvagem. Enquanto Hobbes ou Rousseau falam de um “abdicar” da liberdade natural ao soberano em prol de um projeto social que dê outras espécies de garantias aos membros, neste ponto, Ford é um pouco mais incisivo – Mesmo que uns sejam seduzidos pelas proposições de um novo sistema instaurado, um estado só se transformará efetivamente através da lei do mais forte (esta que parece ser, para Ford, a única lei possível).

Mas o agente da transformação não é Random Stoddard. Fatidicamente, não é ele o homem que matou Liberty Valence. Em um primeiro momento, a cena do confronto final entre Random e Liberty nos abre esta dúvida – ferido e inexperiente, Random esta à mercie de Liberty. Ainda assim seria capaz de ferí-lo? Mais adiante, nos vem a confirmação: quem realmente matou Liberty Valance foi outro homem - uma figura onde se concentra o núcleo de todas as ações. Entra em cena o personagem que torna este filme em algo de realmente mítico: Tom Doniphon (John Wayne) – a terceira figura que tornará os meandros muito mais complexos do que uma estrutura tradicional de mocinho versus vilão.

São os sentimentos de Doniphon que o filme transpira, e onde a obra adquire maior intensidade – sua força bruta, seu destino trágico, sua compreensão da inevitabilidade do processo de transformação que se instaura naquele espaço, e seu reconhecimento da perda de seu amor (a garçonete Hallie) para Random. Doniphon não é como Random: reconhece a banalidade das leis escritas, que exigem braços fortes para aplicação. Também não é como Liberty: tem amor. Este amor é o suficiente para proteger o local. Também é o suficiente para salvar Random e matar Liberty no duelo final entre os dois, dando continuidade ao processo de democratização da América.

E o amor é o impulso para o movimento. Ao conquistar Hallie, Random também conquistará o oeste selvagem. Sem uma intenção esclarecida, Hallie será a razão da sobreposição de um modo de vida (o democrático) sobre outro (a selvageria) – o personagem feminino tem importância crucial, mesmo a um cineasta tido por tão machista – é o desejo de Hallie a propulsão primeira à transformação. Consciente e esclarecido quanto às consequências de seus atos, Doniphon apertará o gatilho e matará Liberty ao perceber que Hallie já não lhe ama mais. E o que lhe resta é uma dolorosa nostalgia de tempos passados. É esta nostalgia a tônica final do filme. Nostalgia bastante esclarecida, que compreende que o processo de transformação é inevitável e que o verdadeiro ato heróico de Doniphon foi ter “passado o bastão adiante”. A cada geração, seu domínio e modo de ser.

Doniphon será esquecido. Random, se tornará uma lenda e construirá uma carreira fundada um imaginário social propagado pelos jornais (a caracterização do universo civilizado em contraposição ao universo selvagem pode ser identificado, sobretudo, na diferença entre os personagens dos jornalistas). Ao revisitar o túmulo de Doniphon, o senador Random, acompanhado de sua esposa Hallie, será impregnado pela mesma nostalgia.

Em um de seus tratados, Rousseau nos fala de um estágio póstumo à selvageria solitária, porém anterior à civilização própriamente dita; uma espécie de estágio tribal, familiar, um ápice do qual a humanidade nunca deveria ter saído; Porém, o filósofo francês reconhece que atravessar este estágio rumo à degradação das virtudes é um processo inevitável (no máximo, retardável por um bom governo). Em certo sentido, John Ford compartilha dos mesmos ideais.

A capacidade que Ford tem de desenhar personagens simbólicos, mas tão concomitantemente humanos, e atingir um registro sincero e sensível, é o que acredito ser tão comovente em seus filmes. A cena do monólogo do jornalista bêbado é uma lição de cinema - após longa interpretação, há um erro na passagem de luz. Do mesmo modo, há diversas pequenas falhas de raccord, exposição, entre outros critérios técnicos. Porém, John Ford não viria a refilmá-las. Pois o essencial já está alí, diante da câmera, latejando sua força. E o resto é resto.



terça-feira, 21 de julho de 2009

Bruma Campestre


Donde estás, oração telúrica? Vai-se,
sorve o vento e expira na fronte dum
Anjo maldito; fulguras na ponte para o
Infinito, e morre em bruma lírica. Vai-se.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Índios


Das margens, ó cinzas de amazonas, resplandesce
o brilho da chama dória, régia a reinar
na matiz das estrelas, e se encerra
em teu corpo nú, Belo como o firmamento,
num doce mergulho na porfíria do século.

Em teus olhos, pérolas se vão. Minguantes,
invocam serenos desejos. E, hirto, arremesso
um pedaço-de-pau. Vejo-lhe afundar, letárgica
derradeira imagem, no ataque se desfaz.
Então fugiste, Ofélia, selvagem aos mediterrâneos?

O que agora da sinagoga da tristeza? O que agora
do Panteão da inocência? O que nos lança
pra além dos murmúrios vagos dos riachos? O que brota
da selva a quem não sabe mentir? Resta-nos
as manhãs de piedade, as vergônteas do passado,
a força violácea do Sol, transpirando,
ainda intermitente, da última aldeia morta.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Debate sobre Arte e Verdade: Heidegger e Schapiro


Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger propôs um tratado onde pretendia fazer vir a luz a natureza íntima do que é a arte, sem imbutir sobre a arte quaisquer teorias filosóficas anteriores. A pretensão (demasiadamente pretensiosa certamente) não é propriamente um objetivismo radical, nem um distanciamento frio do objeto em questão. O método que Heidegger vai herdar e desenvolver da fenomenologia é de outra natureza: Heidegger reconhece que, na lida diária com as coisas, já estamos, de algum modo, nos relacionando com elas através de determinados pré-supostos; o que a filosofia Heideggeriana pretende é ultrapassar estes “pre-conceitos” imediatos e “deixar vir a luz” uma coisa em seu próprio modo de ser, “respeitando” o modo tal qual a coisa vêm a luz – exercício antes hermenêutico do que propriamente fenomenológico – Envolver-se com uma coisa, evitar impôr sobre a coisa teorias dadas de antemão, e deixar a coisa trazer à luz seu modo de ser.

Antes de se lançar nesta empreitada, o filósofo varre o caminho através de uma crítica das interpretação tradicionais da coisa, isto é, de como, na história da filosofia, até então, haviam entendido o conceito de “coisa”, o ser-coisa, ou a coisalidade da coisa: a coisa como substância com seus acidentes; a coisa como a unidade de uma multiplicidade de sensações; e por último, na qual o autor mais se detêm em análise, a coisa como síntese de matéria e forma. As críticas não são tão novas, sobretudo para quem já está minimamente familiarizado com a filosofia heideggeriana: A) a dualidade substância x acidentes deriva de uma tradução desenraízada dos termos gregos. Na realidade, tanto substância quanto acidentes co-pertencem a uma fonte mais originária que esta dualidade sequer desenvolve; B) as sensações parecem ser o acesso mais imediato às coisas, a rigor, o que é dado na sensibilidade. Porém, “jamais, na ocorrência das coisas, percebemos primeiro e propriamente, como ele pretende, uma afluência de sensações (...) Para ouvir um mero ruído, temos de deixar as coisas, afastar o ouvido de as ouvir, isto é, ouvir abst
ractamente”. Resumindo, de modo bem mais sintético: Mais próximos de nós do que as sensações estão as próprias coisas. Inclusive, para que se dê a sensação, é necessário que, de antemão, já tenha se dado algum contato com a coisa; C) A dualidade matéria-forma, desde o idealismo alemão tida como interpretação comum da coisa, enraiza-se na “serventia do apetrecho”. Apetrecho designa “o que é fabricado expressamente para ser utilizado e usado”. Heidegger aponta que, se é a “serventia do apetrecho” que determina tanto a forma quanto a matéria, este comportamento adotado frente ao ente visa a produção e, portanto, “não constituem, de modo nenhum, determinações originais da coisidade da mera coisa.” (A crítica se estende à idéia bíblica de conceber a totalidade dos entes como “criados”, o que aqui nem a mim, nem a Heidegger, interessa tanto). Há nesta crítica da matéria-forma como modo-de-ser originário da coisa um ponto fundamental que o autor nos recorda: A estética, enquanto corrente filosófica, fundou-se na concepção da arte como matéria enformada. Aqui, não se trata de um debate estéril ou divagações – o que Heidegger pretende é redirecionar a filosofia da arte para bases de outra espécie que não a pedra angular sobre a qual a estética a compreende. Este ataque à estética, à necessidade de erudição para a experiência artística, e sobretudo, o foco na intenção do criador, na figura do artista, é o que irá render a Heidegger a crítica do esteta Meyer Schapiro em The Still Life as a Personal Object – A Note on Heidegger and van Gogh.

A crítica de Schapiro peca por uma incompreensão radical das premissas Heideggerianas, e se executa inteiramente na descontextualização de uma interpretação realizada pelo filósofo alemão do quadro de um par-de-sapatos pintado por Van Gogh. Pelos desdobramentos de Schapiro, me parece que o mecanismo desta descontextualização ocorre não por má fé do esteta, mas por um real desentendimento do pensamento Heideggeriano. Em minha visão, é por conta deste desentendimento de base que a crítica não procede, e todo o esforço de Schapiro serve somente na medida em que corrigir seu desentendimento adquire validade e riqueza na medida em que re-atualiza a reflexão de Heidegger sobre a verdade da Arte e esclarece com relevância algo sobre a Arte.

Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger descreve os sapatos pintados por van Gogh como sapatos de camponês, um apetrecho que, pela obra de arte, revela a verdade de um mundo. Schapiro, através de um esforço biográfico do autor, irá demonstrar como, na realidade, o sapato pintado pertence antes a um homem da cidade naqueles tempos do que a um camponês. Segundo Schapiro, Heidegger projetou sobre o quadro suas tendências subjetivas a um pathos do primordial e telúrico, mantendo-se distante da verdade mesma da obra: “Alas for him, the philosopher has indeed deceived himself. He has retained from his encounter with van Gogh´s canvas a moving set of associations with peasant and the soil, which are not sustained by the picture itself. They are grounded rather in his own social outlook with its heavy pathos of the primordial and earthy. He has indeed “imagined everything and projected it into the painting.” He has experienced both too little and too much in his contact with the work. (…) Though he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed – indeed ‘the universal essence of things,’ ‘world and earth in their counterplay’ – this concept of the metaphysical power of art remains here a theoretical idea. The example on which he elaborates with strong conviction does not support that idea.”
O problema fundamental que Schapiro procura denunciar em Heidegger é que o autor supostamente deixou passar a presença do artista na obra (“Heidegger would still have missed an important aspect of the painting: the artist´s presence in the work”). Mas este deixar-passar é mais consciente e natural à reflexão do filósofo do que Schapiro parece querer. A idéia de autor tem como fundamento a intencionalidade do criador, que Heidegger, senão rechaça, põe as palavras em outros termos, perfeitamente cabíveis com o que virá depois em sua tese sobre a arte. Já no primeiro parágrafo do livro, isto é posto de modo bastante claro: “A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua proveniência essencial. Segundo a compreensão normal, a obra surge a partir e através da actividade do artista. Mas por meio e a partir do quê é que o artista é o que é? Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si mesmos, e na sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte.”

O apontamento é simples: sujeito e objeto, criador e criatura, se dão a partir de um mesmo princípio. Antes de artista ou obra de arte, se dá a própria arte. Mais do que isso: o artista se retrai no surgimento da obra que é, em essência, o pôr-se em obra da verdade. De fato, Heidegger define a arte como “o pôr-se em obra da verdade”. A arte acontece no momento em que uma verdade é posta em obra. Mas o que a crítica de Schapiro “deixou-passar”, interessado em validar a Estética como juiza última da arte, é exatamente quais as características desta “verdade” posta em obra na obra de arte.

De modo assertativo, Schapiro colocou que a obra mesma não responde à descrição que Heidegger faz do quadro de van Gogh, e baseia esta assertativa, por um lado, na intenção do autor, e por outro, no fato de que o objeto “representado” por van Gogh não condiz com o objeto que Heidegger julga estar ali. Quanto ao primeiro argumento, é muito simples: a obra de arte esta muito além da “intenção” do criador. Esta suposta intencionalidade remete apenas ao apetrecho, ao que é fabricado, tem solidez e serventia. Retomando a colocação Heideggeriana, a única intenção do artista na obra é suprimir a si mesmo, servir de meio para que a verdade seja posta em obra. A “intenção” do artista, na realidade, já nos diz muito pouco sobre a obra de arte, e menos ainda sobre a arte enquanto tal. O segundo argumento me soa tão antiquado quanto: o que é que o objeto supostamente representado por van Gogh nos diz sobre a obra? O que nos diz sobre a Arte? Sobretudo, há mesmo representação?

(...) será que com a proposição “a arte é o pôr-se-em-obra-da-verdade” se pretende reanimar de novo aquela idéia, em boa hora superada, segundo a qual a arte seria uma imitação e cópia do real? A reprodução do que está perante nós requer, aliás, a conformidade com o ente, a adaptação a este (...) A conformidade com o ente vale, de há muito, como a essência da verdade. Mas será que o que queremos dizer é que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de camponês que realmente está aí, e é uma obra porque consegue fazê-lo? De modo nenhum. Portanto, na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas.

Permanece a questão: o que é a verdade que a arte põe em obra? Já clarificamos que não se trata da representação de um objeto, nem de intenções do autor. Tampouco se trata da essência geral do objeto representado, como Schapiro chega a declarar: he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed. Na análise da Fonte Romana, Heidegger deixa isto claro: Aqui não está retratada poeticamente uma fonte de facto existente, nem é o reflexo da essência geral de uma fonte romana. O sentido mesmo da arte, da verdade posta em obra, que é o que faz a obra de arte ser uma obra de arte e o artista ser um artista, é de outra ordem ainda.

A obra de arte acontece através do combate entre Terra e Mundo. A verdade posta em obra vêm a ser através deste combate (no sentido grego do termo, um combate não sintético, mas de uma unidade que mantêm duas forças, continuamente em movimento, uma a superar a outra, porém sem que jamais nenhuma delas venha a se suprimir). Ao invés de matéria e forma, Heidegger nos propõe uma dualidade distinta para se compreender a natureza da obra de arte: Terra e Mundo.

A crítica de Schapiro parece novamente se confirmar ao demonstrar que o “mundo” dos camponêses que, segundo Heidegger, a obra de arte revela, não passa de uma projeção do filósofo, insustentável pela obra em si: The philosopher finds in the picture of the shows a truth about the world as it is lived by the peasant owner without reflection. Mas aqui, mais uma vez, o mecanismo é mal compreendido, desta vez, por um vício historicista do esteta, herdado das mesmas correntes metafísicas de onde herdou-se a dualidade matéria-forma. Segundo Heidegger, a obra de arte não revela um mundo que existe de antemão. Pelo contrário, ela instaura um mundo. Não há um mundo “antes” da obra de arte e, portanto, não há uma “verdade sobre um mundo” a ser revelada. No pôr-se em obra da verdade, isto é, na arte, um mundo, pela primeira vez, se instaura. Também, antes do acontecimento da verdade, posto em obra na obra de arte, não há sequer história: A verdade, diz-se com efeito, é algo intemporal e supratemporal. Porém, a verdade funda a história e, nesta medida, e somente nesta medida, é igualmente histórica. A arte é histórica somente na medida em que instaura a história pela primeira vez: Sempre que a arte acontece, a saber, quando há um princípio, produz-se na história um choque, a história começa ou recomeça de novo. (...) História é o despertar de um povo para sua tarefa, como inserção no que lhe está dado. (...) Como instauração, a arte é essencialmente histórica. Isto não significa apenas: a arte tem uma história, no sentido exterior de ela ocorrer também na mudança dos tempos, ao lado de muitos outros fenômeno, e de aí se ver sujeita a transformações e perecer, oferecendo à história aspectos mutáveis. A arte é histórica, no sentido essencial de que funda a História e, mais propriamente, no sentido indicado. Assim posto, a leitura Heideggeriana do quadro de Van Gogh, diferentemente do que pretende Schapiro, não visa descrever a verdade do mundo camponês revelada pela obra. Este ponto é fundamental: se há um erro na interpretação de Heidegger, trata-se de um equívoco histórico, e não um problema de entendimento sobre a natureza da arte. Apenas caso a verdade fosse um dado histórico e não uma origem em si mesma, é que tal crítica poderia se impor sobre o entendimento de Heidegger acerca da arte. Mas a verdade surge do nada, é uma origem que ocorre por um jogo de clareira e obscuridade. Não pode haver uma verdade posterior à história, se é o acontecimento da verdade a própria pré-condição da história. (Tanto o conceito de verdade, quanto o método de pensamento Heideggeriano, mais do que Platônico, é, sobretudo, pré-socrático). De fato, é toda a erudição acerca do passado, e o transporte da arte a um suplemento compreendido apenas como manifestação cultural, é que Heidegger põe de lado para nortear sua busca pela arte em seu próprio modo de ser.

Abandonemos por um instante os ataques incisivos de Schapiro e tentemos entender a arte como origem. Onde exatamente Heidegger quer chegar com isso? A arte é um pôr-se em obra da verdade. Este pôr-se em obra acontece através do combate entre Mundo e Terra. A Terra é “o infatigável e incansável que está aí para nada. Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo”, é algo que rejeita abrir-se, que permanece a escapar da claridade a todo instante, essencialmente insondável, e que resiste continuamente a qualquer tentativa de sentido, cálculo ou precisão. Sobre a Terra, e na Terra, é que um Mundo se instala. Porém, somente na medida em que a obra instala um Mundo sobre a Terra é que a Terra surge enquanto tal – não está aí, à luz, como algo de insondável, antes da obra. Somente a obra que “deixa que a Terra seja Terra”. O Mundo, em contrapartida, é da ordem do sentido, “o sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e onde de novo são interrogadas, aí o mundo mundifica (...) Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza.” Mundo e Terra diferem de Matéria e Forma de modo essencial – Diferentemente da Matéria, a Terra resiste qualquer imposição de sentido, e ao invés de se ocultar na Forma, ela vêm a tona no Mundo. Ao confrontar-se com o Mundo, a Terra demonstra sua impenetrabilidade. Matéria e Forma nos falam apenas sobre o apetrecho produzido. Sobre a criação artística, trata-se do combate entre Mundo e Terra.

Devemos ir com cautela por todos estes termos para compreender o mecanismo de Heidegger: Mundo e Terra acontecem apenas na medida em que há obra. Mas a obra também só acontece na medida em que há arte. A arte, neste sentido, é origem. Mas em que momento exatamente a arte acontece, se não é cristalinamente na obra? Não poderia ser na obra, se apenas a partir do momento em que a arte acontece é que há tanto obra quanto artista. A arte é o que vêm primeiro instaurar todo o demais, e ele exige mais do que uma obra para acontecer. É neste ponto que toda a tese de Heidegger se lança à frente das críticas de Schapiro – além de um criador, é necessário igualmente quem a salvaguarde: “Mas, quando uma obra não encontra os que salvaguardam, ou não os encontra imediatamente, de tal modo que eles respondam à verdade que acontece na obra, isso não significa de modo algum que a obra permaneça obra, mesmo sem os que salvaguardam. Ela permanece sempre, se aliás é uma obra, ligada aos que salvaguardam, mesmo se, e precisamente quando, só aguarda os que salvaguardam e espera alcançar a comunhão na sua verdade. (...) Se a arte é a origem da obra, então quer isto dizer que deixa surgir, na sua essência, a co-pertença essencial na obra dos que criam e dos que salvaguardam” A recepção da obra é tão fundamental quanto a criação no acontecimento da verdade pela obra de arte. Recepção não é aqui o termo adequado, mas a comunhão de uma verdade instaurada pela arte, uma instância no rasgão aberto pela obra. O rasgão aberto pela obra é “a juntura de traçado e risco fundamental, de diâmetro e contorno”. Somente quando há esta instância é que há arte, pois a arte é “a salvaguarda criadora da verdade na obra”.

A instância na obra, porém, não é uma decisão de um sujeito autônomo. Pelo contrário, é apenas na medida em que a obra surge estranha e solitária, que torna intranquilizante o que antes era tranquilizante, quanto mais aparentemente dissolve todas as relações imediatas com o homem é que “nos empurra e nos lança nesta (em sua) abertura e, ao mesmo tempo, nos arranca ao habitual. Seguir esta remoção significa: alterar nossas relações habituais com o mundo e a terra e, a partir de então, suspender o comum fazer e valorar, conhecer e observar, para permanecer na verdade que acontece na obra.” Na medida em que esta instância se dá é que podemos denominar um ente como obra-de-arte. Uma resposta a Schapiro emerge: O quadro de Van Gogh só é uma obra de arte na medida em que Heidegger se insere no espaço circunscrito pelo quadro e, nesta inserção, tem suas relações habituais com mundo e terra transformadas. Antes, nem depois disto, consiste a pintura uma obra de arte. A descrição do quadro, como aparece em Origem da obra de arte, é menos uma reflexão sobre o mundo cuja verdade é desvelada (como Schapiro assumiu), e mais um pontual comentário sobre como pode um mundo e uma terra erigir a partir da experiência artística. No fundo, trata-se de desvincular o acontecimento da arte da figura do criador única e simplesmente e compreender que “a instauração só é real na salvaguarda”.

Se faltou um critério histórico a Heidegger na compreensão do quadro de Van Gogh, foi por falta de erudição acerca dos processos de criação do quadro. Mas criação é apenas uma parte do acontecimento da arte – a salvaguarda é a outra. Enquanto Van Gogh pintar um quadro, isto não o classifica como arte há menos que a salvaguarda deste quadro instaure algo de novo, há menos que alguém se depare com este quadro e, neste deparar-se, aconteça uma verdade, uma reconfiguração do espaço, uma sacralização do mundo e um retrair da terra, um habitar desta pessoa em seu envio histórico. O mero conhecimento acerca dos processos de criação artística de Van Gogh, por mais que ajudem à compreensão de determinados mecanismos, não passam de erudição que nada diz sobre a natureza essencial da arte em seu próprio acontecimento.

É esta disparidade temporal possível entre criação e salvaguarda (digamos, por exemplo, mais de um século que se passou entre a pintura de Van Gogh e a leitura de Heidegger) que permanece pouco explorada no livro de Heidegger, uma tarefa que Gadamer assumiria para si. Sobre esta disparidade temporal, ainda será válido um comentário final: tende-se a pensar que a compreensão de arte heideggeriana não permite uma re-atualização da obra em outros tempos, isto é, que ainda haja arte em um quadro de Van Gogh hoje em dia. Isto ocorre por que Heidegger não considera que a arte habita a obra, mas o contrário – e o acontecimento da arte é pontual, instaura o novo no momento da salvaguarda – antes, nem depois disso, pode-se falar em obra de arte. Isto não quer dizer, necessariamente, que a releitura de obras-de-arte de outros tempos é impossível. Apenas que, para que ainda sejam obras, é necessário que executem o rasgão sobre o habitual. Ainda assim, a maneira como ocorre esta releitura é o que permanece pouco refletida, pelo menos em A Origem da Obra de Arte. Para concluir, um lembrete válido de se comentar: E, então, provém a verdade do nada? Sem dúvida, se por nada se entende a mera negação do ente, e se este se concebe como aquilo que habitualmente está aí disponível. (...) O projeto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua oferta a partir do habiual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí histórico. Segundo Heidegger, a arte é Poesia no sentido de um projeto poemático (e não no sentido da poesia de linguagem que, apesar disto, tem um espaço proeminente, visto que, para o alemão, toda linguagem é poesia). Este projeto poemático é na verdade um princípio que já, oculto, contêm o fim. A finalidade já existe latente no princípio, porém sem o meio. O princípio é um salto antecipativo em que, “o que ainda há-de vir já está ultrapassado, se bem que veladamente”. Ao que nos parece, a arte executa o desvelar deste princípio que, no fundo, é um levá-lo ao fim.

Como todo grande filósofo, as leituras de Heidegger exigem paciência e uma constante busca de compreensão de como funciona seu pensamento. E o que está em jogo aqui é a corrente da Estética, que se tornou dominante para as filosofias da arte, fundadas, segundo o alemão, em bases inteiramente falsas no que se refere à natureza mesma da arte. É a esta natureza que sua reflexão se remete, em oposição aos estudos acerca da vida, obra e processo de criação de objetos já de antemão definidos como artísticos, um conhecimento que pouco condiz com a experiência artística em si mesma.