sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Duas tábulas rasas


Assisti a encenação teatral de Moby Dick, dirigida por Aderbal Freire Filho, há poucas horas. Visto ter errado nas especulações que fiz sobre a peça no texto que escrevi sobre o livro, seria justo tecer uma breve reflexão sobre as excelentes resoluções que o diretor encontrou para os impasses que havia indicado. A eliminação do narrador Ismael não resultou em uma hipérbole shakesperiana centralizada entorno da figura de Ahab. Pelo contrário, se tornou uma reflexão sobre o mecanismo da encenação teatral. O resultado é uma adaptação, na maioria das medidas, de esplêndida fidelidade com o que é um dos livros mais enigmáticos da história. O elogio é duplo: além de tornar o problema de adaptação em uma qualidade, soube abarcar a complexidade da questão de Melville sem desbancar para a facilidade de leitura suposta em um clássico. Aderbal Freire Filho conseguiu ser “melvilliano”, senão por um único detalhe. Porém, talvez o detalhe mais fundamental. Se não chega a ser um erro, é ao menos um indicativo de algo a ser compreendido. É isto que comentarei.


Primeiramente, tentemos supor o processo de transposição do livro à peça: a eliminação do personagem de Ismael, o personagem-chave do livro, é a eliminação da figura de um narrador incompatível com a arte teatral. Concepção magistral: o teatro é uma arte de encenação, uma arte representativa onde (relembrando a dualidade clássica mostrar-narrar) não há espaços para um narrador. É preciso encontrar seu equivalente. Aderbal Freire Filho nos propõe que os equivalentes teatrais do Ismael literário são os próprios atores, não estes em seu ofício, mas estes enquanto indivíduos livres e aptos a representar. No fundo da representação há uma figura humana. Execução magistral: Temos nas primeiras cenas um leve endereçamento a isto - o princípio do livro que trata da chegada de Ismael é riscado, visto que este não existe na peça, para, ao invés disto, nos deparamos com um processo visível de construção dos personagens. Mas, tal qual o livro, é preciso aguardar até o prólogo para que tudo isto se evidencie. Por trás da representação estão Ísio, Orã, André e Chico.

Este processo de construção, perfeitamente transposto, remete à narrativa de Moby Dick. O capitão Ahab, trágico shakesperiano, é obcecado por se vingar da grande baleia branca que arrancou sua perna. Melville, e também nisto a adaptação é feliz, jamais deu a indicar exatamente o que é que a baleia representa. Para além disso, parece nos exigir que a interpretemos de algum modo, que lancemos sobre ela alguma representação, quando, tudo que sabemos, de fato, é que a baleia resiste com violência a qualquer espécie de controle ou conhecimento. Como já havia dito, a pretensão de Ahab é a pretensão de conhecimento e controle do que é incogniscível e incontrolável. O capitão trágico rejeita sua condição humana e desafia os deuses. Deste conflito, apenas Ismael sairá ileso. Ismael reconhece os limites do homem e os limites da representação.

A peça desenha o mesmo conflito de cabo a rabo. Põe em cena as digressões, explora as nuâncias literárias por um lado. Por outro, reconhece os limites da literalidade. Faz dos livro botes de caça que a baleia irá destroçar. Ergue a bandeira vermelha com o gavião, talvez o símbolo maior das pretensões que Melville aponta estarem a se afundar no confronto com a baleia branca. Apenas um mero detalhe que lançará a peça em um sentido distinto do livro.

Há uma diferença leve entre o tom que Aderbal imprime à peça e o tom que Melville imprime ao livro. Ainda que ambos sejam polivalentes, indo da ironia à dramaticidade, da tragédia ao cinismo – é no grau de variação destes tons que há uma diferença um tanto brusca. A peça os realça, o livro os ameniza. Os atores-narradores da peça ora representam a tragédia, ora a comédia; ora um personagem, ora outro – tudo levado ao extremo da representação, por vezes até caricatural. Esta pluralidade é uma técnica conhecida no teatro contemporâneo, e tem um princípio básico que fica evidenciado na peça – a representação pode morrer, porém o ator não morrerá. E o homem é uma tábula rasa, um sem-número de possibilidades que à cada instante, encena uma delas. Desde as desconstruções do humanismo, tendo seu ápice nas filosofias existencialistas, o homem foi destituído de suas faculdades e lançado a um esvaziamento absoluto. O instante é enfatizado. A variação de tom é radical se num momento podemos ser trágico, e no outro cômico.

Ismael não é trágico, nem cômico, é outra coisa. Seu tom amenizado não é plural, mas uno. Ainda que a variação exista, ela encontra seus limites, pois remetem sempre à estílistica do mesmo narrador. A tragédia é um auto-martírio do homem ao tomar consciência do limite de sua condição perante os deuses. A comédia, uma auto-ironia de si mesmo, quando levar-se a sério enquanto criatura humana é “trágico” demais. E se a peça vai de um extremo ao outro, de momento em momento, o caminho de Melville é uma terceira via: o homem é também uma tábula rasa, uma variação de tons e digressões. Porém, esta tábula rasa não funciona através de um processo de construção e desconstrução de representações à cada instante, mas ecoa através do tom uníssono de Melville, nunca demais trágico, nunca demais cômico. E por mais que reconheça os limites da literatura ao tentar dar conta do tema da baleia branca, não põe de lado, destrói ou ridiculariza o conteúdo que lançar-se nesta empreitada contêm. Ao contrário disto, é um estudioso dedicado e entusiasmado com a literatura, a cetologia, e todas as espécies de conhecimentos frágeis do homem, pois são estes conhecimentos frágeis que nos são possíveis, e estabelecer diálogo com eles em uma cadeia de trocas, em uma dialética, com verdadeiro entusiasmo e paixão, é o que une os homem em uma mesma condição – uma condição que não deseja ser maior que os deuses, porém tampouco despreza a si mesmo. E que acredita em sua própria potência de comunicação. No fundo, nem cômico, nem trágico.

A desconstrução da representação não deveria visar um esvaziamento, mas um encontro do homem com uma natureza íntima que subjaz na representação. O prólogo da peça parece compreender este princípio. Porém, resta que vejamos esta natureza íntima ecoar no tom da peça. Se são os atores, enquanto seres humanos, que se encontram no fundo da representação, e se no princípio e no fim da peça isto é esclarecido, falta que esta condição perpasse todo o movimento da peça, dando-lhe unidade. Fico me perguntando se não seria o caso de Aderbal subir também ao palco...

A diferença entre duas tábulas rasas – uma tem como medida a figura uníssona de Ismael; a outra, sem esta medida, faz da pluralidade uma variação de gêneros e representações. A arte contemporânea, influenciada pelas filosofias de desconstrução, de um modo geral, opta pelo segundo caminho.

Mas a façanha já está realizada - A peça soube pôr em cena os dramas de Ahab e nos propõe uma solução próxima, porém distinta, da resolução de Melville. E repito: soube, sobretudo, adaptar um dos clássicos mais enigmáticos da história sem deixar perder a latitude da obra, e sem cair nos caminhos fáceis possíveis. O que nos resta? Um elogio à excelência de Aderbal Freire Filho. E uma veneração à genialidade de Melville.

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