quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Mérito de Melville


Um mérito memorável de Melville é provar que as digressões literárias podem adquirir, além de uma força estética, ou de uma construção temporal, um caráter narrativo ou representativo. Ao menos para mim, é estranho pensar que Moby Dick é uma história sobre a tragédia do obcecado capitão Ahab, quando, desde a primeira página, e pela maior parte do livro, o que temos não são senão digressões do narrador Ismael. O ato é deixado em segundo plano, mas isto não ocorre em detrimento de uma exaltação das sensações possíveis em um conjunto de digressões. Pelo contrário, as digressões são tão representativas ou mais do que os atos. A tragédia de Ahab tem seus atos obnubliados, ou melhor dizendo, interessam apenas na medida em que constituem um contraponto ao verdadeiro interesse de Melville – uma literatura de digressões, referências e trocas. O mérito de Melville é provar através da literatura que a arte estética e a arte representativa não se contrapõe – apenas constituem dois lados de uma mesma mo
eda.

Martelo na tecla: Moby Dick não é um livro sobre Ahab, mas um livro sobre Ismael. O personagem central não é o capitão, apesar de ser ele o ditador de todas as ações no livro. Em uma obra onde as ações não servem de base para as digressões, de que nos serve a ação própriamente dita? Uma literatura onde não é em cima de um conjunto de atos que a escrita dilata ou contrai o tempo, explora a ambiência e os diversos sentidos possíveis; onde o acontecimento presente não é o único gatilho possível para a digressão; onde a escrita não tem amarras factuais, mas seu próprio espaço no mundo. – uma anti-tragédia? Mas se as digressões não visam sensações? As digressões não são fugas ao tema, mas um aprofundamento que constitui o próprio tema. O tema de Melville é, desde o título, rigorosamente claro: Moby Dick. Toda digressão remete somente a este mesmo objeto, de modo que a escrita persiste em não fugir à representatividade. – uma anti-estética?


A chave da obra de Melville não está em Ahab, o capitão obcecado pela enorme baleia branca. Sendo um pouco rigoroso, diria que Ahab é um personagem antiquado – uma figura shakesperiana, inclusive em seus monólogos. Um capitão trágico que centraliza entorno de si as ações a serem tomadas, visando sempre sobrepôr-se à figura divina e incontrolável que é a baleia. Não é senão o símbolo do narrador trágico, que guia o navio Pequod em direção à sua própria ruína ao enfrentar braço-a-braço com a grande baleia branca, símbolo do incompreensível, deste outro cujo modo de ser está para além de nossa compreensão, do objeto de toda busca e investigação que funciona apenas através de suas próprias leis. Ahab estuda seus movimentos, estuda seus trajetos, tenta compreendê-lo para adquirir controle sobre ele. Para derrotá-lo e ter poder sobre o destino. A obsessão deste narrador trágico é sua vingança: fez da vida que subjaz ao enorme corpo do Leviatã o seu inimigo, pois perdeu para ele sua perna. É a perna que perdeu, orgão de locomoção, que define o sentido dos movimentos. Um narrador de atos obcecado por se vingar de um objeto que lhe é incontrolável, pois este mesmo objeto lhe tirou o orgão que lhe daria algum rumo. Um ditador lançado no imprevisível da existência, buscando tomar controle dela, lançando sobre uma baleia branca suas representações, consciente de seu destino irremediável. – eis o desenho que Melville faz do capitão Ahab.

É verdade – Ahab é um mistério. O maior mistério de Ahab não se dá por nossa incompreensão de seu caráter, pois seu caráter é muito bem esclarecido. Mas, pelo contrário, nasce da consciência que Ahab tem de sua própria condição. Ahab não é apenas um obcecado em sobrepôr-se à natureza. É um obcecado que compreende sua situação e se vê sem possibilidades de transformá-la. Eis o seu grande mistério – por quê? Por que Ahab permanece Ahab? A isto, o livro não nos responde.

What is it, what nameless, inscrutable, unearthly thing is it; what cozening, hidden lord and master, and cruel, remorseless emperor commands me; that against all natural lovings and longings, I so keep pushing, and crowding, and jamming myself on all the time; recklessly making me ready to do what in my own proper, natural heart, I durst not so much as dare? Is Ahab, Ahab? Is it I, God, or who, that lifts this arm? But if the great sun move not of himself; but is an errand-boy in heaven; nor one single star can revolve, but by some invisible power; how then can this one small heart beat; this one small brain think thoughts unless God does that beating, does that thinking, and not I. By heaven, man, we are turned round and round in this world, like younder windlass, and Fate is the handspike.

Mas repito: a obsessão de Ahab não é a temática de Moby Dick. Também não é Melville um Shakespeare moderno, e tampouco o livro uma tragédia. E sua escrita não é somente uma sequência de atos cujo desfecho está definido de antemão. Pois a ação e representação constituem apenas um lado da moeda. Moby Dick é um prenúncio da morte de um ditador, mas também a fundação da redenção de um órfão.


Se o trágico shakespeariano não nos deixa um sobrevivente, o apocalipse de Melville ainda permite um Noé – é Ismael, o narrador que sobreviveu o percurso danado do Pequod para relatar os acontecimentos. Por não ter atuação direta nos eventos que sucedem no percurso do navio, sua presença é aparentemente oculta. Mas surge marcante na ordem do discurso; na intertextualidade, no modo de composição do livro – é através disto que conhecemos, de fato, o caráter deste personagem central. Pois Ismael não é um mero narrador de Ahab, um acompanhante da trama, tal qual Watson está para Sherlock Holmes – na ordem do discurso, esta diferença fundamental acontecerá exatamente pela estrutura em digressões.

Antes da histórica apresentação (“Call-me Ismael”), o livro de Melville nos lança definições e modos de escrita em diversas línguas do termo “baleia”, acompanhado de um conjunto de citações extraído de diversas obras da literatura universal (da ficcional à filológica) onde há, em algum sentido, uma referência às baleias. E as digressões, desde então, serão a matéria-prima do livro – digressões sobre baleias, sobre a arte da caça, sobre a arte de navegar, ou até sobre a cor branca. Mais impressionante ainda é que estas digressões não sejam devaneios, mas tem em sua substância um caráter diretamente representativo, senão simbólico – longe de um puro esteticismo, as digressões estão sempre a visar o tema, sempre a remeter a ele, simbólica, estética ou representativamente. Há uma identidade inaparente entre Ahab e Ismael: são ambos obcecados pelo mesmo tema. Porém, Ismael não é um agente com um destino final. É um dialético, que circula o tema e extrai dele digressões, mantendo-se sempre em relação ao mesmo princípio. Um entusiasta. Um homem apaixonado, e não vingativo.

A obsessão de Ismael é o que sustenta, envolve e renova dentro da literatura de Melville e, parece, nos relembra alguns princípios básicos da dialética: o tema não é um fim a ser exaurido, mas um princípio a partir do qual nasce toda digressão. A escrita visa algo, porém não faz deste visar seu envio, faz deste visar um ponto de partida que deve, à cada instante, ser renovado, revigorado – o tema é uma força constante que age sobre cada digressão.

Uma literatura de permutações e aberturas. Se fundamenta na troca de experiências. Ismael, por mais que erudito, “lança-se ao mar como um marujo, e não capitão”. Permite ser tocado e transformado pelo outro. Torna-se companheiro de Queequeg, o selvagem de estranhos rituais que, no primeiro contato, lhe ameaça de morte. Um trato de dádiva e recebimento, receber e retornar, ler e escrever. Isto, contudo, sem jamais perder o entusiasmo. Pois a dialética perderá seu rumo caso não se mantenha constantemente regida pelo mesmo princípio. Por esta possibilidade de trocar experiências é que Ismael será o personagem redimido: será salvo pelo caixão de Queequeeg, transformado em bote salva-vidas por seu capitão.

As constantes referências à literatura universal, além de indicar de que leituras nasceu o livro de Melville, remetem a este mesmo princípio. A escrita, de Homero ou Platão a Rabelais e Montaigne, ainda existe como algo vivo, como uma experiência a ser transmitida a cada leitura. É nesta cadeia de troca de experiências que Ismael-Melville deseja se inserir. A grande baleia branca, o leviatã, não é algo a ser conquistado em plenitude, pois sua natureza sempre nos escapa de algum modo. O que nos resta é um ato descritivo, de aproximação e simpatia. Em suma, é no processo de troca de experiência que há um crescimento do homem – é este o verdadeiro processo democrático, humanista e moderno.

Deste embate entre a obsessão de Ahab e Ismael nascerão princípios sociológicos, antropológicos, e metáforas das mais diversas ordens, da história da Inglaterra e dos EUA, da formação do liberalismo, do fanatismo, entre outros. O que me interessa, sobretudo, é evidenciar a diferença de comportamento.

Mas Ahab e Ismael não são apenas contrapontos. Algumas coisas são deixadas em aberto: Existiria o entusiasmo de Ismael, não fosse este suscitado por seu capitão? Haveria ele de se interessar por Moby Dick? Se não é um agente, um capitão, seria capaz de navegar na direção do grande Leviatã? O quão não foi a obsessão violenta e ditatorial de Ahab uma fagulha, uma abertura à possibilidade da obsessão jovial de Ismael? Ahab morre. Ismael vive. Mas haveria um Ismael sem Ahab? O quão, ao invés de meros contrapontos, não são Ismael e Ahab, no fundo, complementos?

Confesso que sofri um certo desânimo ao descobrir que, na encenação de Moby Dick, do Aderbal Freire Filho, que estreiou na semana passado, o personagem-narrador de Ismael-Melville havia sido suprimido. Isto quer dizer que a peça se fundamentará na tragédia de Ahab, e que as digressões talvez não atinjam pleno sentido. Sabendo que Aderbal Freire Filho montou Hamlet recentemente, não é difícil advinhar que a peça irá no sentido de uma tragédia shakespeariana. Por um lado, a obra perde sua latitude. Por outro, espero que, sendo Ahab o foco central, que a obra obtenha sucesso em responder à pergunta que Melville não respondeu: Por quê, conhecendo sua condição, Ahab permanece sendo como é? Se bem que é difícil surgir uma explicação do capitão Ahab melhor do que o personagem de House (sim, do seriado. Tenho preconceito com seriados, com TV em geral – não assisto. Mas este deve ser assistido de cabeça a rabo, sobretudo pelos amadores de Ahab). Até assistí-la, fico na torcida. Quanto à adaptação cinematográfica de John Huston, já esta prefiro nem comentar.

Confesso, também, que é com Ahab que tenho maior identificação. Sua força e sua solidão trágica, sua ambição e sua obsessão ao mesmo tempo calculista e descontrolada:

When I think of this life I have led; the desolation of solitude it has been; the masoned, walled-town of a captain´s exclusiveness, which admits but small entrance to any sympathy from the green country without - oh, weariness! heaviness! Guinea-coast slavery of solitary command! - When I think of all this; only half-suspected, not so keenly known to me before - and how for forty years I have fed upon salted fare - fit emblem of the dry nourishment of my soul.

Mas repito, pela última vez: Moby Dick não é um livro sobre a obsessão de Ahab, mas sobre o narrador Ismael-Melville. Não sobre monólogos, mas sobre digressões. Sobre seu entusiasmo e sua paixão pacífica. Sem Ismael, uma repetição hiperbólica de antepassados.


E foi também Ismael-Melville que transformou a minha vida de maneira tão verdadeiramente íntima nas últimas semanas. Sua sensibilidade, carinho e tranquilidade para com os objetos de seu entusiasmo. Sua capacidade de permutação. Em realidade, um órfão mais vigoroso do que qualquer filho. Ou do que qualquer pai.


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