sábado, 30 de janeiro de 2010

Matéria e Sentido: o cinema de Albert Serra


Longe de uma comparação estilística de qualquer natureza, é possível que encontremos no cinema de Albert Serra um vago sentido ético que o aproxime (por oposição) da literatura de Joyce – o que a palavra deve expressar de uma figura heróica-lendária é sua própria consciência em meio ao mundo; o que a imagem deve fazer com esta mesma figura é presentificá-la – de ambos os modos, o resultado é uma aproximação do leitor/espectador dos heróis fabulares, de sua intimidade (sem psicologias baratas. Sem psicologias. E ponto final) e sua existência presente. A aproximação é mais significativa se o Odisseus grego pode ser encontrado na Dublin em pleno século XX. Uma jornada de décadas é reduzida a um dia – o grandioso se torna diminuto ao mesmo tempo em que um sentimento ínfimo, uma percepção mínima, se faz presente em proporções dilatadas, expandidas ao titânico, dado ser esta a única verdadeira epifania possível. Com este (aparentemente) simples mecanismo, Joyce inaugura a escrita moderna. Ao enviesar este sistema (e estou convicto que, mesmo que formado em literatura, não percebe sua guinada), Serra executa o movimento oposto: através de pessoas comuns de sua cidade natal, faz filmes sobre personalidades históricamente icônicas na literatura universal. Ao contrário de Joyce, que no simples revela o magnânimo, Serra veste de magnânimo o que é simples. E, em momento algum nos sentimos enganados por sua pequena rasteira. Pois, no fundo, esta rasteira não é um ato de má-fé, mas uma inversão digna de admiração, que aponta um limite radical das potencialidades do cinema. Ele não é dado a fluxos de consciência in literis, à epifanias do homem comum (Bloom e Dédalus) que são analogias a grandes mitos históricos (Odisseu e Telemaco). O cinema é dado à captação de superfícies, ao conhecimento anti-histórico, pré-histórico, onde o Dom Quixote de Honra de Cavaleiro e os três rei-magos de O Canto dos Pássaros existem antes de serem o que se tornaram para a história: são homens comuns, em suas jornadas um tanto loucas e excêntricas, calcadas em uma fé absoluta de que atingirão o que desejam atingir. E, sobretudo, apenas pessoas vagando antes de se tornarem o que viriam a se tornar para a história universal. Isto implica em muitos resultados artísticos:


A História exige a palavra. O cinema, em sua especificidade mais radical, é absolutamente anti-histórico. Não exige sentidos – exige matérias. Mas Albert Serra não é um destes diretores que fará de seus filmes um repertório de matérias, afecções e pulsões brutas voltadas a sujeitos auto-centrados, largados à deriva e inefetivos em sua lida política com o mundo (sobre o tema ou algo por aí, vejam a bela crítica de Tatiana Monassa na contracampo). O sistema que o catalão monta é um pouco mais complexo quando, na realidade, o mundo não é seu ponto de partida. Serra pega emprestado os sentidos da história coletiva e universal, e procura a matéria destes sentidos – o que implica uma inversão filosófica contraditória – devemos primeiro acreditar no sentido já históricamente dado (e devemos mesmo?) às figuras dos três rei-magos ou de Dom Quixote, para então podermos extrair a matéria deste sentido.




No fundo, a premissa é ao mesmo tempo arrojada, ingênua e radical: é preciso ter fé como um ponto-de-partida (o que nos lembra Dreyer de imediato) – fé no misè-en-scene (é preciso crer que aquelas figuras jogadas à sua frente são, de fato, Dom Quixote e Sancho Pança), fé em uma universalidade, em uma ordem de qualquer natureza – Esta fé é tanto o ponto-de-partida da jornada de seus personagens (E não é à toa, e nem exageradamente que Serra se diga “o único diretor atual verdadeiramente cristão”). Fé de Dom Quixote que encontrará o divino; fé dos três rei-magos que encontrarão o menino Jesus. Esta jornada é estranha, vazia, e os personagens são como cegos tateando no escuro, mas com convicção de que encontrarão a luz. Uma breve inversão que opõe Serra a grande parte do cinema atual, que espera da imagem-afecção extraída da matéria um sentido próprio. Serra nos diz que a matéria só é efetivamente afetiva se lhe doamos um sentido de antemão. Não é à toa que o diretor catalão opte por estas figuras excêntricas, e configure sua jornada de modo mais excêntrico ainda – nos a tomamos pela memória coletiva-histórica, mas o que vemos é a sua pré-história – As tomamos por seu sentido e vemos sua matéria. E esta mesma matéria só adquire afecção se tomada neste sentido histórico emprestado, seu contraponto.

Por outro lado, a partir do momento em que esta convicção inaugural, este contrato de fé, é aceito, até a matéria mais simples começa a fazer sentido. Em O canto dos pássaros, na sequência após o encontro dos rei-magos com Jesus – encontro este que é pautado por uma trilha sonóra (que imediatamente nos remete à mais significativa referência, Bresson, para quem a música extra-diegética é necessariamente divina) – os três rei magos sentam em uma floresta. Um deles pega uma pedra e diz que a beleza às vezes nos atinge até nas coisas mais simples. O simples se torna belo se o sentido se concretiza.




No fundo, o universo não é inteiramente novo, mas a síntese destas referências, somadas a outras que por vezes aparentam estar lá, Straub, Rosselini e Akerman, por exemplo, e a elevação deste mecanismo a seu limite, são fatores que trazem uma força incomparável ao estilo de Serra. A opção do romance de Cervantes não é apenas um pretexto para evidenciar a fuga extrema da literalidade. É, também, uma re-atualização da figura de Dom Quixote; um interesse de, através da figura histórica, discursar e expor uma tensão.

O Quixote de Cervantes é uma figura que, graças aos romances de cavalheiros populares na idade média, tornou-se alucinado – as narrativas de grandes feitos heróicos lhe invadiram a alma ao ponto de não saber distinguir a história ficcional da história de acontecimentos fáticos. Em um posicionamento platônico, Cervantes condena os efeitos que esta espécie de literatura heróica tem sobre o povo de seus tempos. Segundo a polaridade que Ricoeur estabelece entre ficção e alucinação, Dom Quixote teria vertido inteiramente para o polo da alucinação, onde o inventado se confunde com a realidade histórica, e teria perdido o sentido primordial da ficção, o polo oposto. O Quixote de Albert Serra não é tanto um alucinado quanto um cristão que enxerga a força da matéria na palpabilidade das paisagens, em córregos, no entardecer, nas árvores e planícies. Esta força das paisagens só existe para Quixote, que tem fé – Não serve ao preguiçoso e descrente Pança. Após 30 minutos de filme onde o que temos é uma sucessão de poses e movimentos, Dom Quixote finalmente fala a Sancho Pança: “Sancho, acorde. Você está dormindo de novo. A única coisa que faz é dormir. Teve uma chuva, mas você não viu. Estava dormindo”. Confesso que perguntei a mim mesmo se houve a tal chuva. Voltei o filme e vi que não houve. Serra nos passa a perna novamente, questiona a fé que temos no que assistimos, e nos diz, sobretudo, que se não admitirmos um sentido (de qualquer natureza) que anteceda a matéria, não é apenas a nossa postura ética que é posta em cheque, mas a própria matéria se torna desinteressante, pois até a mínima imagem-afecção já é enfrentada pelos sentidos da palavra.

Então, voltemos a Joyce por um instante: os grandes sentimentos que a arte expressa também são possíveis ao homem comum, que destroça a verdade histórica à cada átimo de sua vida. Esta aproximação de arte e vida íntima que Joyce consegue executar com brilhantismo é também onde Serra se torna altivo, frio e pretensioso – se Quixote é Quixote por princípio, por seu conteúdo histórico, já temos com ele uma relação de distância que a câmera, interessada na matéria desta existência histórica, não consegue superar. Neste sentido, acho-o demasiadamente respeitoso com a história – seu tom é sempre demais classicista, até em situações aparentemente banais, e o escape desta exaltação é o espectador, que é demasiadamente primitivo para apreciá-lo. Por outro lado, se não aceitamos que Quixote é Quixote, é porque não temos fé, e então sua jornada pelas paisagens perde absolutamente o sentido. Mas estes ainda são os primeiros filmes de Serra, e já vem com um vigor único, de uma terra alienígena qualquer. O que mais me anima em seu cinema é a convicção de que sua grande obra-prima ainda está por vir – no fundo, ainda aguardo o dia em que possa vê-lo filmar Bloom e Dédalos em suas caminhadas por Dublin.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

As Casuarinas


Fugirei praquela sombra calma
Q´à tardinha em teus braços nasce
Distrair-me da alvura do Sol...

As sonecas após os passeios
Nas areias que engolfam os dedos
a sorver, dédalus mortus, pensamentos santos,
nas ondas sinceras do quebra-mar...

Cavar um buraco, enterrar promessas.
Ver os saltos dos botos no amanhecer
O sobrevôo dos pássaros cinzas
A expedição dos siris pelos nossos pés
O bréjo quente cor-de-petróleo
Nossa pele adocicada de descanso,
O reflexo de nossas mãos
submersas, intactas, intácteis.

O tempo da pesca que inexiste
nos redime deste sol que engana
a geografia dos poetas,
a biologia dos que remam,
amenizados e enternecidos,
contra o furor da ventania.

Estranho ter ido tão longe, tão fundo,
para retornar, pacificado, ao intervalo
da superfície; abraçar teu breu
na visão desta aurora rubra,
no mar que inda toca uma lua
argenta a brilhar no charco.

A doença molusca que temos,
Pandemônio de negros caramujos,
esta brasa que nos incendeia,
cuidá-la com a calma
do gesto interiorano.

Voltarei, prometo! algum dia...
E não esquecerei que
Todo anjo é Terrível.
Mas, de agora em diante,
ver erigir no lago a última lei
antes que o Tempo volte a existir:
Todo mergulho será tranquilo.