quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Elegia


Brindemos aos estrangeiros inquietos; aos que andam
com chagas nas pernas e passeiam, com o uísque solitário
da madrugada, no fundo da pressão das horas;
com a calma dos caçadores, e a seriedade
dos algarismos de um sarabande, vingar
uma mácula nesta santa complascência.

Nós, que elevamos os ombros e depositamos
o sangue diário em cada ato; que vamos mais longe
apesar das nódoas viscosas da existência; e agarramos
nos alpendres dos terremotos, nos moinhos dos furacões;
estendemos as mãos aos românticos, dizendo não haver
redenção neste mundo de discórdias.

Nós, desta matilha desunida, estes lupinos mancos
de olhos secos; rejeitamos a felicidade irrisória
dos saltimbancos, a ternura destes abraços que encerram
um ardor que nos condena a vagar, tal qual fantasmas,
espectros em busca de seus lençóis. Mas amamos,
como um porco-espinho de acúleos venenosos, e temos
os sonhos sóbrios de insensatez. Pois reconhecemos,
na rachura de nossos corpos, que portamos esta insígnia
do purgatório; um anseio, um ímpeto, uma brasa
que inflama a tocha dos santuários esquecidos.

Nós, que mergulhamos na angústia, sem a candura
dos bôbos-da-corte, sem as máscaras dos cínicos,
o medo dos estáveis ou a passividade dos serenos;
E que iremos, em qualquer direção, tombar neste solo baldio
as artérias de cada lombar despojada, para que possamos
fugir da perfeição do paraíso, ouvir os suplícios do mundo,
o turbilhão de gritos que nele se encerra; e erigir,
ao custo de nossa alma, com a sinceridade absoluta
de nossos olhos, uma réstia das verdadeiras catedrais.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Comédia Humana

A Comédia Humana é um título referencial à trilogia poética de Dante que Honoré de Balzac encontrou para definir a unidade de sua obra. Este pequeno trocadilho irônico nos diz muito sobre que espécie de retratos estão em jogo na literatura do principal autor francês de seus tempos: são dramas íntimos de figuras humanas, retratos psicológicos de personagens complexos que, em sua conjuntura e relações, erigem o espaço parisiense do século XIX. Ao invés da cosmogonia medieval de Dante, do inferno ao paraíso, Balzac nos explica o funcionamento do contrato social na prática urbana através dos pequenos dramas burgueses, e, apesar de chamá-lo de comédia, em geral, seus personagens traçam o percurso oposto, trágico, do paraíso ao inferno.

Pelo tom balzaquiano simultâneamente melodramático, burlesco e irônico (portanto, distante de uma subjetividade dos personagens e próximo das condições de vida de sua classe social), e cuja maior parte da obra foi publicada em folhetins jornalísticos, o que acompanhamos é o processo de perda da inocência de algum personagem ao entrar na vida amorosa e se deparar com o luxo parisiense, e a depravação das virtudes na medida em que há uma ascenção social. É o que ocorre com Lucien de Rubempré em Ilusões Perdidas, oriundo da província e instigado por um amor romântico, vai à capital francesa com a pretensão de se tornar poeta (e desiste do trabalho árduo e artesanal da poesia em favor dos retornos imediatos do jornalismo); Também com Eugène de Rastignac em Pai Goirot, que desiste dos estudos que veio realizar na capital ao se apaixonar pelo luxo da alta sociedade; O mesmo ocorre com Félix em O Lírio do Vale, e até Carlos Grandet em Eugênia Grandet, porém estes dois últimos se encontram divididos entre duas espécies de amor: o amor platônico (que tem como obstáculo de realização a distância entre o que ama e o amado), e o desejo carnal (que surge como um paliativo do amor platônico não-realizado). O que irá tornar os retratos balzaquianos verdadeiramente interessantes é o tratamento único que dará a cada personagem, os meandros singulares que os envolve, e as reações diferentes que terão em relação a um mesmo espaço orgânico, desenho que Balzac faz de Paris, uma sociedade viva que, por seu luxo ostensivo, seduz e deprava quem dela se aproximar, retirando-o do estado de pureza com promessas e sonhos de uma felicidade plena que resultará apenas em conflitos, mentiras, e infelicidade; um mundo de aparências atrativas, instaurado após a revolução, e que excita a avidez por poder e disperdício. Estas são qualidades da condição humana – sofrendo pela distância platônica entre sua natureza material e o ideal, o homem encontrará nos vícios um paliativo para este “ideal não-realizado” – O Lírio do Vale talvez seja sua obra de maior compreensão destas premissas filosóficas, livro que irá caracterizar um personagem romântico com ímpetos de retorno ao útero materno, amante do isolamento da vida social, e que encontra na comunhão com fenômenos naturais - vales, pradarias, estrelas - um estado de redenção; mas que irá se desvirtuar assim que se deparar com a paixão. Este desvirtuamento é no que consiste a condição humana.

Trata-se, sobretudo, de levar adiante as reflexões inauguradas por Rousseau (em diversos momentos, o escritor sugere ser um aluno de Jean-Jacques, chegando a citá-lo diretamente): Mas, nos tempos de Balzac, já seria um erro acreditar que o contrato social poderia ser vigorado pela virtude, ou que os vícios possam ser freados pelo Estado. O efeito do contrato social não instaurou uma natureza diferente das relações humanas, mas tão somente incentivou que os membros do sociedade abstenham-se da virtude e lancem toda responsabilidade legislativa a instituições igualmente corrompidas. O corpo burocrático se separava das decisões políticas diretamente humanas, efeito que até hoje persiste. O platonismo rousseaniano decái perante o furor das paixões excitadas por esta sociedade liberal, e Balzac (um monarquista, por sinal) reconhece que um retorno ao estado de inocência é ilusório, pois a comédia humana destruirá quaisquer idealismos. Os personagens que insistem na manutenção do virtuosismo neste campo de guerra sofrem as consequências desta escolha: a solidão trágica de Eugênia Grandet, a morte por ciúme da condessa de Mortsauf, a miséria e o anonimato do escritor Daniel D´Arthez, a prisão de David Séchard por dívidas contraídas pelo irmão, ou a morte num quarto de pensão e o subsequente enterro abandonado do pai Goriot - uma espécie de Rei Lear que irá morrer em miséria por mimar a ostentação das filhas, símbolo central de um heroísmo honrado que decái com a ascenção da burguesia na França.

Os resultados deste percurso são sempre trágicos: o homem sái de um estado de pureza para mergulhar num abismo de sofrimento. É o que ocorre com Lucièn de Rubempré (personagem central de seu magnus-opus Ilusões Perdidas e provável alterego de Balzac – incentivado pelo sucesso comercial de Walter Scott, Balzac vai da província a Paris afim de arriscar-se à fama de escritor). Este destino de perdição do homem não é remediável. Porém, ainda que sem jamais enfatizar uma possível terceira via aos impasses que coloca, pode-se deduzir, da atitude de alguns de seus personagens, que Balzac ainda nos deixa caminhos abertos.

David Sechard irá traçar um caminho oposto a Lucién: não irá ceder à imediaticidade das paixões parisiense, viverá em miséria e, junto com um grupo de estudiosos pretendentes a escritores, irá exercitar sua arte cotidianamente para, no futuro, ser reconhecido como um dos grandes escritores da história. Apesar de não ser capaz de “salvar” Lucién, Sechard será o exemplo de virtude, da figura obstinada em manter-se sã em um mundo degradado, aquele que “não acredita que exista genialidade sem conhecimentos metafísicos”.

Há também Eugène. Contanto Eugène de Rastignac venha a traçar o mesmo percurso de Lucièn de Rubempré, este jovem advogado mantêm sua generosidade – é quem permanece ao lado do Pai Goriot até sua morte, como um filho que reconheceu a sujeira da sociedade parisiense, mas não se desvirtuou (por completo). Após o enterro de Goriot, Eugène olha Paris dos montes e diz a si mesmo: “Agora é entre nós dois” – abandonará os estudos, mas assumirá uma atitude de enfrentamento, de combate a determinados ideais lançando-se à estrutura onde estes ideais vigoram afim de corromper o o que está corrompido. Esta percepção de mundo ocorre devido ao encontro do jovem provinciano com a misteriosa e cativante figura de Vautrin, um “Iago” que induz o destino dos homens contra as convenções sociais, um cínico de atitudes anarquistas cujo tom traz uma secura incisiva e faulkneriana, absolutamente distoante da tônica melodramática dos demais personagens de Balzac. Vautrin é a radicalização desta sociedade, a figura que marca a passagem da democracia ao anarquismo. Não é um herói – ao contrário disto, é um criminoso. Porém um criminoso cuja víl motivação de anti-sociabilidade parece santa perto do desenho que Balzac faz do resto da sociedade. Segue um longo discurso que, além de evidenciar quem eu acho a figura mais interessante de todos os livros que li, também pincela o fundamento das questões balzaquianas. É, possívelmente, pela rispidez e pela súbita aparição em um livro que, até então, mantêm um singelo tom de novela (antes as novelas de nossos tempos tivessem esta mesma coragem!) o trecho que mais gosto de tudo que li do francês:

"Quanto a nós, nós temos ambição, temos os Beauséant como aliados, andamos a pé, comemos os refogados da mamãe Vauquer e gostamos dos belos jantares do Faubourg Saint-Germain, dormimos num catre e queremos um palacete! Não censuro seus desejos. Ter ambição, meu queridinho, não é para qualquer um. Pergunte às mulheres que homens elas procuram, são os ambiciosos. Os ambiciosos têm os rins mais fortes, o sangue mais rico em ferro, o coração mais quente do que os outros homens. E a mulher fica tão feliz e tão bela nas horas em que é mais forte, que prefere a todos os homens aquele cuja força é enorme, ainda que corra o risco de ser destruída por ele. Faço o inventário de seus desejos a fim de lhe fazer uma pergunta. A pergunta aqui está. Temos uma fome de lobo, nossos dentinhos são pontiagudos, como faremos para encher a marmita? Temos que comer primeiro o Código, não é divertido e nada nos ensina, mas é preciso. Que seja. Tornamo-nos advogados para virmos a ser presidentes de um tribunal, condenarmos aos trabalhos forçados uns pobres-diabos que valem mais do que nós com T.F. tatuado sobre os ombros, para provar aos ricos que eles podem dormir em paz. Não é divertido e, além disso, é demorado. Primeiro, dois anos nos aborrecendo em Paris, olhando, sem tocar, os docinhos que nos dão água na boca. É cansativo desejar o tempo todo sem nunca se satisfazer. Se o senhor fosse pálido e da natureza dos moluscos, nada teria a temer; mas temos o sangue febril dos leões e um apetite de fazer vinte bobagens por dia. Vai então sucumbir a este suplício, o mais horrível que já vimos no inferno do bom Deus. Admitamos que seja sensato, que beba leite e que faça elegias; será preciso, generoso como o senhor é, começar, depois de muitos aborrecimentos e privações capazes de enraivecer um cão, por ser o substituto de algum fulano, num buraco da cidade onde o governo vai lhe atirar mil francos de salário, como se atira uma sopa a um buldogue de açougueiro. Lata para os ladrões, pleiteie a favor dos ricos, mande guilhotinar gente de bem. Muito obrigado! Se não tiver protetores, vai apodercer em seu tribunal do interior. Aos trinta anos, será juiz, com mil e duzentos francos por ano, se ainda não tiver jogado longe a toga. Quando chegar aos quarenta, vai casar com a filha de algum moleiro, com cerca de seis mil libras de renda. Obrigado! Tendo protetores, será procurador do rei aos trinta anos, com mil escudos de salário, e se casará com a filha do prefeito. Se fizer algumas pequenas baixezas políticas, como ler num boletim Vitel em vez de Manuel (dá rima, deixa a consciência tranquila), será, aos quarenta anos, procurador geral e poderá se tornar deputado. Observe, meu caro menino, que teremos arranhado nossa consciênciazinha, que teremos tido vinte anos de aborrecimentos, de misérias secretas, e que nossas irmãs terão ficado para titias. Tenho a honra de lhe fazer observar também que há apenas vinte procuradores gerais na França e que vocês são vinte mil aspirantes ao posto, entre os quais há os trapaceiros que venderiam a família para subir um grau. Se a profissão o desgosta, vejamos outra coisa. O barão de Rastignac quer ser advogado? Ah! Muito bem. É preciso penar por dez anos, gastar mil francos por mês, ter uma biblioteca, um gabinete, frequentar a sociedade, baijar a toga de um promotor para conseguir causas, varrer o palácio com a língua. Se tal profissão lhe desse sucesso, eu não diria que não; mas encontre em Paris cinco advogados que, aos cinquenta anos, ganham mais de cinquenta mil francos por ano. Ah! Em vez de me enfraquecer o ânimo, eu preferiria me tornar corsário. Aliás, onde conseguir dinheiro? Tudo isto não tem graça. Temos uma fonte no dote de uma mulher. Você quer se casar? Será amarrar uma pedra ao pescoço; além disso, casando-se por dinheiro, o que acontece com nossos sentimentos de honra, nossa nobreza? Mais vale começar hoje sua revolta contra as convenções humanas. Não seria nada se deitar como uma serpente diante de uma mulher, lamber os pés da mãe, cometer baixezas que enojariam uma porca, blergh! Se você ao menos encontrasse a felicidade. Mas você será infeliz como as pedras do esgoto com uma mulher com quem tiver se casado desse jeito. Ainda vale mais guerrear com os homens do que lutar com sua mulher. Aí está a encruzadilha da vida, rapaz, escolha. Você já escolheu: você foi à casa de nossa prima de Beauséant e lá farejou o luxo. Você foi à casa da sra. de Restaud, a filha do pai Goirot, e lá farejou a parisiense. Naquele dia, você voltou com uma palavra escrita na testa, e que eu soube ler muito bem: Vencer! Vencer a qualquer preço. Bravo!, disse eu, aí está um tipo que me agrada. Você precisou de dinheiro. Onde conseguir? Você sangrou suas irmãs. Todos os irmãos espoliam um pouco das irmãs. Seus quinhentos francos arrancados, Deus sabe como, num país onde se encontram mais castanhas do que moedas de cem tostões, vão voar como soldados na hora da pilhagem! E depois, vai fazer o quê? Vai trabalhar? O trabalho, concebido como você o concebe agora, consegue, nos velhos dias, um apartamento na casa da mamãe Vauquer aos fulanos da estirpe de Poiret. Uma fortuna rápida é o problema ao qual os cinquenta mil jovens que estão em sua situação se dedicam. Você é uma unidade desse total aí. Imagine os esforços que tem pela frente e a fúria do combate. Vocês terão que se comer uns aos outros como aranhas num pote, considerando que não existem cinquenta mil boas colocações. Sabe como alguém abre seu caminho por aqui? Pelo brilho do gênio ou pela habilidade da corrupção. É preciso entrar nessa massa de homens como uma bala de canhão, ou por ela se imiscuir como uma peste. A honestidade de nada serve. Todos se dobram sob o poder do gênio, detestam-no, tentam caluniá-lo, porque ele toma sem dividir, mas todos se dobram se ele persiste; numa palavra, adoram-no de joelhos quando não conseguiram enterrá-lo na lama. A corrupção é a arma da mediocridade que abunda, e você sentirá sua presença em toda parte. (...) E o homem honesto é o inimigo comum. Mas o que você acha que seja o homem honesto? Em Paris, o homem honesto é aquele que se cala e se recusa a dividir. Não estou falando desses pobres coitados que por toda parte cumprem seu dever sem jamais serem recompensados por seu trabalho e que chamo de confraria dos chinelos do bom Deus. Sem dúvida, ali está a virtude em toda a flor de sua asneira, mas ali está a miséria. Vejo daqui a careta dessa boa gente se Deus nos fizesse a brincadeira de mau gosto de estar ausente no juízo final. Então, se quiser a fortuna rapidamente, é preciso já ser rico, ou parecer ser. Para enriquecer, trata-se aqui de fazer grandes jogadas; ou então dar calotes e estamos conversados! Se, entre as cem profissões que se pode abraçar, há dez homens que logo têm sucesso, o público os chama de ladrões. Tire suas conclusões. Eis a vida como ela é. Nada disso é mais bonito do que a cozinha, fede tanto quanto, e é preciso sujar as mãos se queremos nos regalar; saiba apenas limpá-las direito: aí está toda a moral da nossa época. Se lhe falo assim da sociedade é porque ela me deu esse direito, eu a conheço. Acha que estou criticando? De modo algum. Ela sempre foi assim. Os moralistas jamais a mudaram. O homem é imperfeito. Às vezes ele é mais ou menos hipócrita, e os ingênuos dizem então que ele tem ou não tem modos. Não estou acusando os ricos em favor do povo: o homem é o mesmo em cima, embaixo, no meio. Em cada milhão desse grande rebanho se encontram dez compadres que se colocam acima de tudo, até das leis; estou entre eles. Você, se for um homem superior, ande em linha reta e de cabeça erguida. Mas vai ser preciso lutar contra a inveja, a calúnia, a mediocridade, contra o mundo todo."