sábado, 23 de maio de 2009

Canto de Reconciliação


Do cenáculo nos portos radiantes, as rapinas bailam.
Os ensaios de dias turvos são menores
do que passeios tardios nas varandas da Boa Vista.

Nos rochedos do velho farol, um último mergulho neutro.
Brutas lágrimas enterradas em jardins secretos.
Os cantos de veraneios plenos debulham todo açucar.

Mas te vi, estrangeira, e quis ser menos velho
Do que rugas macias. E brincavas com as formigas,
jabuticaba em teus pés, divertidas guernicas!
Quem eramos nós antes da tempestade?

E teu vestido de flores, ensaboado de indagações.
Roubei dele um girasol, tal qual ladrão que se esgueira
invisível. Ainda que sob nuvens a tarde esteja,
e tu desconheças quem te espreita,
guardarei-o para sempre de recordação.

Airosas vozes entoam o reconcílio
da História: nas janelas de toda mansão,
nas sarjetas de cada calçada,
no rumar de um breve amanhã.

Entrego-lhe os mapas que fiz da cidade
Com rasuras a explicar o sentido dos dias
Para que explique a temperança dos pios.
Na madrugada, os fogos de artifício
lançam calmas curiosidades:

Quem eramos nós, mais que órfãos desolados?
Antes da tempestade?


sexta-feira, 22 de maio de 2009

Fur Alina


"Como duas pessoas cujos caminhos parecem que irão se cruzar, mas não..."



Uma explicação muito bonita do processo de criação artística de uma música muito bonita. Não pretendo colocar muitos vídeos por aqui... Só este enquanto termino de escrever outras coisas.

domingo, 17 de maio de 2009

Irrisório Bandeirante


O austero sopro do amanhã
Mitigando um breve boreal
Onde jaz tua vereda?

O inexorável vôo do encontro
Assolados de solidão
Dois sorrisos imperfeitos
Traça a breve migração

Ó flâmula que ostentas, varonil!
No processo das várzeas...
Onde praz teu preto boldo?

E o berço de águas malvas
Peregrina nos quintais
Onde assentam os vermelhos
Que aos prantos satisfaz

Partem frágeis solilóquios
Sob um crasso entorpecer
Onde dormem tuas feridas?

O verde alento nas ruínas
Sufocou-se de alergia
E persistes tua busca!
... pelos razos escafandros.

Ó, irrisório bandeirante!
O avelã das tuas íris
Não esconde teus errantes.

Das folhas secas várzeas,
Com esmero esculpir
As calmas tardes pardas
Morrem claras de existir

Promete, irmão das luzes...
Um vermute aos solitários,
Um segredo aos inocentes,
Um sorriso aos imigrantes.

E um silêncio, tão irretorquível,
às promessas sublinhadas de nódoas,
do irrisório bandeirante.

domingo, 10 de maio de 2009

Impressões sobre "O Outono do Solitário"


É um pouco natural para mim ter uma obsessão imediata por buscar incessantemente compreender aquilo que, em um primeiro contato, me arrebata para além de qualquer compreensão, que me toca em profundidade; em geral, não fico satisfeito apenas com o mero toque. Atribuo a esta obsessão por compreensão um interesse imediato, uma profunda atração que senti pelo universo hermético de Georg Trakl, desde o primeiro contato, e uma necessidade vital de destrinchar o que exatamente, nos versos finais de De Profundis, nas palavras crassas e desritmadas, objetivas e úmidas, assombradas e enfraquecidas, o que exatamente nelas inundava a alma.


À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó de estrelas
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos

O universo de Trakl me surgia radicalmente fechado em si mesmo, e eu me sentia instigado a tentar abrí-lo de algum modo. O comentário de Rilke sobre o poeta austríaco é bastante esclarecedor: dizia que sua poesia nascia em um espaço fechado, “como de alguém que estivesse excluído e se comprimisse contra a vidraça”. Lendo-o cada vez mais, Trakl logo se tornou um dos meus poetas favoritos, uma grandíssima influência em todos os campos artísticos. Espero que esta preferência por universos tão ensimesmados não diga tanto sobre mim quanto imagino dizer. De qualquer modo, achei que, com o começo deste blog, seria um bom momento de tecer alguns comentários sobre impressões que tive de suas poesias e dos estudos que li sobre este grande poeta.

Com razão, Georg Trakl foi associado às vanguardas expressionistas (o desencantamento com o mundo e o sentimento de aprisionamento são evidentes), e sua poesia nasceu de um enveredamento bastante único de toda a tradição poética alemã, se tratando, sobretudo, de uma resposta a determinadas concepções de mundo dos poetas românticos, de Goethes a Holderlin, e que ultrapassam influências bastante claras do simbolismo de Baudelaire e Rimbaud. Porém, observado com cautela, todo o seu texto é estranhamente sóbrio (contrariando determinadas interpretações de que o uso de drogas foi responsável pelas imagens desenvolvidas pelo escritor), de uma lucidez assombrosa até em formular suas próprias idéias artísticas, o que, para um poeta viciado, que vivenciou passivamente uma guerra mundial e cometeu suicídio, em decorrência, aos 26 anos, tal maturidade sempre me soou abismal. Suas soluções jamais foram lançar-se em direção a uma escrita ébria, mas formular, imagem por imagem, uma estilística bastante própria.

O que é exatamente a “expressão” contida no expressionismo de Trakl? Observemos alguns versos de Grodek:

Ao entardecer, as florestas outonais
ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas
e os lagos azuis, por sobre os quais rola
um sol sombrio: a noite abraça
guerreiros moribundos, o lamento selvagem
das suas bocas destroçadas

O que temos exatamente é uma descrição de um ambiente. O narrador se esconde por trás deste ambiente – ele narra suas visões sem jamais se colocar no plano das palavras – são raríssimos as poesias na qual Trakl coloca um eu-lírico de qualquer espécie. Esta atitude não denota distanciamento, porém passividade. Não frieza, mas incapacidade. O homem de Trakl já não é um sujeito, pois é incapaz de agir no mundo, de exercer força sobre a ambiência à sua volta, e está condenado a manter os olhos abertos frente a todas as calamidades que o cercam sem poder interrompê-las em instante algum. O eu-lírico não vêm a tona por que não pode atuar nem construir o espaço. É um narrador aprisionado em suas próprias observações de um ambiente do qual está excluído. Estes versos de Grodek são alguns dos últimos de sua vida – as memórias do que o autor vivenciou como enfermeiro na primeira guerra, vendo os corpos mutilados nas batalhas sem poder fazer nada em relação a este “lamento selvagem”.

O expressionismo trakliano não é um movimento único de projeção do interior no exterior, de “expressar” pura e simplesmente, mas um duplo movimento: no próprio ato de apreender a ambiência, o narrador se projeta de algum modo sobre ela, distorcendo-a, porém, sem modificá-la. Estas distorções da ambiência, em Trakl, surgem através de um processo de desritmia, de uma métrica de elaboração descontínua, e principalmente, do acompanhamento de um adjetivo ou modo de caracterização de cada nome (“bocas destroçadas”, “lamento selvagem”, “guerreiros moribundos”, “armas mortíferas”, “florestas outonais”, etc...), recurso que será radicalizado em todos os sentidos possíveis. Esta “caracterização” dos nomes é uma distorção que parece não proceder do narrador, mas do próprio ambiente. Isto é, o narrador parece jamais escolher “como” caracterizar a ambiência que está à sua frente. O “moribundo” que caracteriza o “guerreiro” não é uma opção de narrador – não se trata de um sujeito universal autônomo e absoluto, mas de um indivíduo excluído e passivo, incapaz de lidar com o ritmo mesmo das coisas – o “moribundo” como caracterização do “guerreiro” é a única caracterização possível, e não há outra ambiência que não esta para um narrador tão sofrido.

Esta caracterização da ambiência irá atingir um nível enorme de distorção, e logo praticamente toda a poesia de Trakl será montada através destes processos de associações e distorções, sobretudo através de sinestesias:

Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos

A sinestesia não é para Trakl um ponto de partida, mas um eventual ponto de chegada, o resultado de determinadas percepções sensoriais do mundo à sua volta. Estas percepções sensoriais da ambiência são por vezes tão ambíguas, que, para exprimí-las, é necessário ultrapassar as associações diretas e mais palpáveis, e inundar os sentidos ao ponto de confundí-los inteiramente. De 1912-1914, no final de sua curta carreira, o processo de sinestesia irá se voltar diretamente para o uso estético e simbólico das cores, que irei comentar melhor adiante, e que constituirá o caminho mais fácil de compreensão das referências históricas impressas na obra de Trakl.

Além das sinestesias, a personificação também será utilizada à exaustão. O sentido deste uso é bastante simplório, na realidade: se a atitude do homem trakliano é a de exclusão e passividade frente a um mundo de sentidos confusos e a impossibilidade absoluta de transformá-lo, o agente de todos os movimentos narrados são os elementos da própria ambiência. Neste sentido, a ambiência de Trakl é personificada, causadora dos movimentos que pouco tem haver com quaisquer intencionalidades do homem que a observa em passividade. As imagens poéticas enquadram elementos autônomos na ambiência, que tem suas próprias ações personificadas:

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde

De todas as poesias de Trakl, a que mais me interessou foram os primeiros versos do poema “O Outono do Solitário”, que viriam, a meu ver, a formular exatamente o que é seu processo de expressão e compreensão da existência – irão colocar em jogo um gama enorme de qualidades que, tanto temática quanto estilisticamente, em acordo com o resto de sua obra, me soam como um forte resumo. Apesar de identificar em Grodek um maior furor, de ver em De profundis um hino , de achar Sebastião no sonho mais enigmático, ou de ter em Aos emudecidos uma melhor tematização secular, acho que são nos estrofes iniciais de O Outono do Solitário que residem suas principais palavras.

Volto o escuro outono cheio de fruta e opulência
Brilho amarelado dos belos dias de verão
Um puro azul emerge da capa em decadência;
O vôo das aves traz ecos de lendas ao serão
Pisadas estão as uvas. Na tranquila ambiência
Pairam leves respostas à velada questão.

No universo de Trakl, certamente as imagens tem prioridade sobre a discursividade. Refiro-me a imagens em um sentido quase Bergsoniano (‘imagens’ como percepções mais imediatas da realidade, mediadas pelos sentidos). Estas imagens imediatas não exigem reflexão ou um encaminhamento mais consciente, pois se localizam na própria mediação entre o interior e o exterior. Em Trakl, estas imagens estão no ambiente onde se encontra o narrador. As últimas palavras deste verso põe em pauta uma crença que me parece fundamental às pretensões de Trakl: o espaço é capaz de revelação. A questão fundamental está velada, obscurecida. Porém, na ambiência há “leves respostas”. Em que estado estão estas “leves respostas”? Elas “pairam”, isto é, estão lá, largadas... “pairando”. Perante este trecho, não seria estranho que Heidegger iria utilizar da poesia de Trakl para suas formulações tardias sobre espaço, linguagem e poesia. De qualquer modo, a tranquila ambiência nos responde sobre algo que está velado. Este algo velado jamais virá à luz, tal como todo círculo hermético construído pela poesia de Trakl não nos vêm à luz em integridade. A citação de Rilke aqui se aplica: estamos diante de algo fechado, algo velado, como que diante de uma vidraça. Jamais nos envolvemos em plenitude com o que se encontra por trás desta vidraça. Colados a ela, temos apenas leves respostas, temos apenas imagens. Assim acredito ser a experiência fundamental da poesia de Trakl – não se trata de criar compreensão ou estranhamento – trata-se apenas de se colar nesta grande vidraça e, eventualmente, através das imagens poéticas que dela imergem, se envolver de algum modo com este universo pouco contíguo. Experienciar os versos descritivos de Trakl é uma maneira de compartilhar do estado de espírito do autor e do ambiente onde este se encontra, pois suas imagens nascem de um verdadeiro choque de ambos. Compartilhar estas imagens é o único modo de comunicação possível segundo a poesia Trakliana. Apenas leves respostas, a velada questão é inacessível. O contato entre dois nunca é pleno. Comunicação interrompida. Comunicação que tem por interlocutor um vidro: do outro lado, há uma alma inteiramente distinta, hermética, um mundo de leis próprias que se esgotam em si mesmo. Este sentimento de “exclusão”, na obra de Trakl é sempre presente, sempre justificado, a cada verso.

Mas esta poesia de vidro tem ainda alguns desdobramentos necessários: 1. Esta exclusão fundamental do homem, apesar de dolorífica, sufocante, é proeminentemente um berço de criação. Não é um culto do isolamento, mas uma observação de suas consequências; 2. O fato de jamais se ter acesso à velada questão senão através de leves respostas que pairam no ambiente terá como efeito a cor azul. Este segundo tópico exige um recúo histórico mais delicado. O primeiro, apesar de referencial, é posto em cena no título (“O outono do solitário”) nos primeiros versos, ditando a tônica do poema:

Volta o escuro outono cheio de fruta e opulência
Brilho amarelado dos belos dias de verão

A associação entre Outono e Solidão: a dialética das estações tem origem, principalmente, no interesse do romantismo por uma natureza que expresse o estado de espírito; e na tradição poética européia, esta dialética foi lida e relida de diversos modos, com diversas consequências. Trakl irá fazer do outono uma estação que está intimamente ligada ao distanciamento entre homem e mundo, um apartamento radical e desarmônico, responsável por uma exclusão frutífera. No escuro do outono há fruta e opulência. Em diversos momentos do poema isto é retomado: “Em sombrolhos de cansaço aninham-se já estrelas”; “Em frias casas entra um surdo cumprimento / E anjos saem silenciosos de janelas”, etc... A repetição desta estrutura coloca este mundo que impõe ao homem um isolamento como, também, um espaço de criação. Criação, porém, que tem na desarmônia, violência e escuridão o seu substrato. O formato de aproximação da ambiência com um vidro também irá fazer surgir o azul: “Um puro azul emerge da capa em decadência”. O Azul romântico tem o sentido de “nostalgia do uno”, os românticos assumiram para si mesmo a tarefa de re-encontrar este uno na multiplicidade. O estudo de Cristina Caliolo é bastante esclarecedor sobre a espécie de diálogo que Trakl procura com a tradição poética alemã. Em “Outono do Solitário”, o azul “emerge da capa em decadência”. Ao invés do vidro, a capa: transparência é substituída por opacidade. Da opacidade, do que é velado, da “capa” que aparta o homem do mundo é que emerge o azul. Esta capa se encontra em decadência, e dela emerge um vislumbre do uno – não se sabe se uma visão verdadeira da eternidade ou uma ilusão – na realidade, para Trakl, me parece, isto pouco importa - o que lhe interessa é a operação. O azul é recolocado na estrofe final do poema:

Em sombrolhos de cansaço aninham-se já estrelas;
Em casas frias entra um surdo cumprimento
E anjos saem silenciosos de janelas
Azuis - olhos de amantes em doce sofrimento;
Sussurram canas: e um horror ósseo nasce delas,
Quando salgueiros orvalham gotas negras num lamento

A referência ao azul dos românticos é direta. A estrutura se repete: “Em frias casas entra um surdo cumprimento / E anjos saem silenciosos de janelas / Azuis – olhos de amantes em sofrimento.” Os anjos e as janelas são associados à palavra azul. A ambiguidade do azul se sustenta. Entram surdos cumprimentos, saem anjos silenciosos. No fundo, a mesma relação de algo que emerge de algo que decai é repetida por praticamente todos os versos do poema. Neste jogo paradoxal de entradas e saídas, transparências e obscuridades, é que surge o azul, para Trakl, uma espécie de síntese que surge apenas na forma de esperança futura ou nostalgia passada.

Trakl é um poeta de mais paradoxos do que ambiguidades. Este paradoxal deriva da semântica romântica estrapolando seus próprios limites, sendo levada à confusão de seus sentidos. Ainda que eu esteja em dissonância com algumas destas concepções tradicionais que o poeta austríaco retoma apenas para tornar paradoxal, e ainda que não concorde com algumas de suas soluções, é difícil não admirar um poeta cujo interesse principal é expressar sua sensibilidade com a maior sinceridade possível, ainda que isso vá criar entraves de comunicação com seu leitor. Sua fidelidade absoluta com suas impressões do mundo já bastaram para suscitar meu interesse em sua obra. Pois, apesar de todo o esforço para explicar algo sobre o seu universo hermético, este exercício é sumamente desnecessário. Trakl, no fundo, não é nada além de pura ambiência.

Referências:
TRAKL, Georg. De profundis e outros poemas
NETTO, Modesto Carone. Metáfora e Montagem (um estudo sobre a poesia de Georg Trakl)
CALIOLO, Cristina. Azuis Românticos na lírica de Georg Trakl (disponível online em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-04072008-105939/)
Obra completa de Trakl em inglês disponível em http://www.literaturnische.de/Trakl/english/index-trakl-e.htm



sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os Teleféricos


Vagalumes de horizontes dourados,
Ainda espectros em risos tortos,
Quando a chama de outonos mortos,
Incendeia os teus gramados.

O chuvisco de puras lágrimas,
Escala denso o azul das horas,
O rubro vento das auroras,
Néscio engodo aos diafragmas.


Entorpe e inerte serenidade,
onde afoga o antebraço,
De Ulisses ou de Iago,
Rouba o ouro das cidades.

O solilóquio de tantas faces,
Os gritos mornos de tantos lábios.
Não vês ao fundo os teleféricos?
Vão-se, calmos, teleféricos.


quinta-feira, 7 de maio de 2009

Ferry

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Um dos parágrafos mais importantes do século XX. Por enquanto, só ele. Em breve, algum comentário.

"Do Dasein às máquinas que desejam e à figura contemporânea do zumbi, é um mesmo processo de destruição do ideal da autonomia que se completa. Pode ser que este processo não seja necessariamente catastrófico e não prepare inevitavelmente uma “humanidade submissa e alienada”. Pelo menos, deveria parecer paradoxal e problemático que isto que se dá por pós-moderno, tirando todo o sentido a uma idéia de homem que constituiu a abordagem própria da modernidade, tome assim a estranha aura de uma regressão, substituindo de novo o ideal de uma natureza submissa a uma vontade por um ideal pré-moderno, de uma natureza à qual a vontade é submetida."

- Luc Ferry e Alain Renaut

terça-feira, 5 de maio de 2009

Dança e Utopia: de Miklos Jancsó a Bela Tarr



Traçarei um breve comentário sobre dois diretores de épocas diferentes, que estabelecem entre si alguma espécie de continuidade: Miklos Jancsó, diretor húngaro que teve o ápice de sua carreira nos anos 60 e 70; e Bela Tarr, húngaro também, cujo momento mais interessante teve começo nos anos 90 e se estende até a atualidade. A primeira aproximação dos dois é bastante óbvia e direta – são dois estetas radicais do plano-sequência . Cada qual, à sua maneira, também vai se encaminhar por vertentes simbolistas (curiosamente, muitos estetas do plano-sequência se encaminharam neste sentido). Não obstante, a relação entre eles é ainda mais profunda: Bela Tarr parece querer fazer de seu cinema uma espécie de releitura da obra de Jancsó, seu compatriota . A intenção que tenho aqui é evocar o sentido preciso que as sequências de dança irão ganhar na obra de cada um destes. Os dois, de modos bastante diversos, irão associar a dança diretamente à idéia de utopia.


Em Salmo Vermelho, Miklos Jancsó faz um filme sobre uma revolução camponesa no século XIX com a intenção de explorar os meandros das teses socialistas, e tensionar a relação entre a solução e o problema destas teses. O que temos por fim é uma visão bastante humanista de um processo violento, o que leva o espectador a se indagar: isto tudo é possível? É bastante simples: as teses socialistas utópicas tem como concepção histórica uma dialética materialista teleológica – a finalidade da história é a supressão dos conflitos de classe. Os personagens de Jancsó (ou deveriamos dizer, personagem? Pois é sempre o grupo que está em centro, nunca o indivíduo) são experiências vivas de uma comunidade onde não há classes. Os membros desta comunidade, contudo, não são naives o suficiente para ignorar as dificuldades que qualquer tese teleológica encontrará para se manifestar na prática. Mas estes são homens obstinados e, sobretudo, homens encantados. Fechar os olhos ao que está à sua volta suprimindo um determinado modo de ser não é propriamente uma questão de inocência, mas uma opção consciente e clarificada – para que uma ideologia social se instaure, ela necessita da adesão dos indivíduos. Porém, um idealismo comunal exige ainda mais: para que a História (leia-se aqui a História marxista, isto é, a que tem por fim a supressão do conflito de classes) encontre seu desfecho, é necessário que um “envolvimento livre” nesta comunidade sem classes e, mais do que isso, o sacrifício de todos os membros: É necessário que os indivíduos suportem as diversas pressões externas em prol de um ideal utópico de sociedade, que talvez jamais seja alcançado. Este sacrifício é um pré-suposto.

Mas a situação ainda ganha mais delineados. Miklos Jancsó coloca a sociedade sem classes como um ideal transcedental, de certo modo, “religioso”. O paralelismo entre socialismo e religião é indubitável: a inspiração primeira do filme veio de cantos/orações comunistas de um poeta do século XIX encontrada pelo autor, orações estas que serão exaustivamente repetidas durante o filme. Mas esta religiosidade jamais é condenada: diversos milagres ocorrem durante o filme. Uma enorme parábola fantástica filmada com tanta naturalidade que nos leva a indagar: Isto tudo é possível? Estes milagres são possíveis? O socialismo é possível? Jancsó, como todo grande artista, não nos responde: expõe as tensões, plano a plano, sequência a sequência, e nos debruça sobre ela como quem diz: lide com isso.

Conheco pouquíssimo da obra de Jancsó, e vi este filme apenas uma vez, há muito tempo. Mas a impressão foi fortíssima. Os desdobramentos estéticos vão longe: o filme tem apenas 20 e poucos planos, todos eles impregnados por danças e cânticos, movimentação constante de atores, algazarras mil ocorrendo em planícies longínquas e esvaziadas. As danças, na maior parte das vezes, alegres, sempre encantadas, se contrapõe continuamente com a violência externa (e interna, pois também no próprio grupo tensões se instauram). No espaço cênico, parece não haver nada além de gente caminhando e dançando. E a cada corte, a geografia muda, mas parece sempre a mesma. O humanismo de Jancsó volta seus interesses inteiramente para as relações sociais entre um grupo e o resto da sociedade, que pretende suprimí-lo à medida que ele ganha adeptos. E a dança exibe todo seu vermelho – todo o seu encanto com um ideal, encanto este que é ao mesmo tempo uma cegueira monumental quanto ao mundo ao seu redor. A dança, neste filme de Jancsó (e até onde sei, é neste filme, pela primeira vez, que a dança se tornaria um elemento de misè-en-scene simbólico e relevante) irá carregar todas as contradições que constituem exatamente o corpo da obra – o encanto e a cegueira (como já havia dito, uma cegueira “por opção”, cegueira consciente) caminham juntos e não há entrega na dança sem haver um esquecimento momentaneo de todos as pedras envolvidas no percurso em direção a um ideal transcendente. É exatamente desta “tensão sem supressão” que se dá a dança, e que se dá a alma do filme. É esta a tensão envolvida em toda utopia que já não é naíve. Nas décadas de Jancsó, em uma Hungria estando sob um segundo regime socialista há décadas, após enfrentar um levante revolucionário em 56 e os subsequentes descontentamentos com o regime, nenhuma utopia social poderia ser naíve.


A chave das danças de Bela Tarr não se encontra tão distante assim, visto ser a proposta de grande porção de seu cinema realizar uma releitura do modernismo crítico de Jancsó à luz das soluções narrativas e estéticas de uma tendência do cinema contemporâneo em construir o espaço a partir da própria “impotência da câmera”, de sua “impossibilidade de se ultrapassar determinados limites impostos pelo personagem”. Trata-se de matar dois coelhos com uma única cajadada: por um lado, tensionar uma crítica e retificação ao marxismo de Jancsó, por outro lado, questionar uma suposta intransponibilidade do aparato cinematográfico pré-concebida que, em certo sentido, se tornou hegemônica em grande parte do cinema mundial. Quanto à dança, estará presente em quase todos dos seus filmes. Desde Prefab People, um de seus filmes “realistas”, a dança já caracteriza uma determinada utopia histórica. A partir de Almanac Fall e Danação, seu cinema abandona a câmera na mão e entra na maquinaria, e a dança, além de se alongar, vai ganhando esteticismo. A partir de Satantango, mas sobretudo em As Harmonias de Werckmeister, Bela Tarr parece encantar-se com a possibilidade de transcendência, e esvai de seus planos quaisquer restos do realismo crítico que marcou o princípio da sua obra.

Em Danação, a interpretação que Tarr faz de Jancsó é pincelada às claras, e as palavras de uma das personagens é indúbia: “Que apaixonante multidão. Uma festa! A dança... Braços e Pernas, troncos e ombros funcionando em perfeita harmonia. O modo como falam... Movimentos, olhares que elevam o dançarino sobre problemas telúricos. Os jovens são tão apaixonados! Acredite em mim: não há nada como encontrar um ao outro quando há música que aquece o coração. Duas mãos dadas. Um pé sente onde o outro irá pisar. E segue, não importa onde o outro pisar. Porque ele acredita que estará voando de agora em diante. Em cada swing ou girada. Quem sabe? Talvez... esteja mesmo voando...”

O que em Bálsamo Vermelho é uma investigação das bases de uma teoria política, em Danação se torna uma questão mais filosófica e menos histórica, apesar de todos os paralelos que Tarr realizará com a situação da Hungria pós-abertura (o teleférico, no primeiro plano, é seco e direto). A dança é caracterizada por “perfeita harmonia”, pelos braços (que constroem) e as pernas (que caminham). Por duas mãos dadas, e pés que conhecem os movimentos. Pés que acreditam que estão voando e que talvez estejam, realmente. Após tudo o que foi dito sobre Jancsó, não se torna evidente os paralelos? O plano seguinte é um dos raros planos estáticos do filme, e de toda obra do Tarr. O enquadramento aberto emoldura o grupo que dança bêbado, abraçados, em círculo. Com alguma fidelidade, Tarr repõe Jancsó, porém não sem desdobramentos. No plano seguinte, ainda durante a dança, o personagem central observa a mulher que deseja trair o marido com um milionário. Em seguida, a chuva começa. Ao final da dança, ninguém mais está lá. Restam duas pessoas: uma senhora, espécie de profeta que “conhece a natureza das coisas” e a observa com tristeza e distância, personagem esta que, desde o começo do filme, anuncia o apocalipse. Um fatalismo desesperador, que soa a mim como um eco da literatura de Sandor Marai, é colocado em cena. Antes, ela também observava a dança à distância, isto é, observava o triste desespero das coisas que a dança, ou melhor, a utopia, pode mascarar por apenas algumas horas; o outro personagem que ainda resta após a dança continua a dançar, sobre uma poça que permanece da chuva, solitário e encantado. É o resto de uma utopia, um sonho que já não é coletivo. Durante a dança, este personagem, um resto do personagem-grupo idealista de Jancsó diz a uma mulher à sua frente: “Estou sentado aqui esperando por você, contando o tempo até eu fazer 70 anos. Nós nunca tivemos um filho. Mas outros tiveram mais a perder. Mas eu não o verei após a morte, querida. Porque nunca acreditei nisso, e você teve suas dúvidas. É apenas perto do anoitecer quando penso em você. Vejo sua testa cansada na poeira.”

Após o fim da utopia, que, como diz o personagem, “não deixou filhos”, resta a Bela Tarr comentar, a seu modo ao mesmo tempo estético, alegórico e filosófico, exatamente o que sobrou naquele bar decadente. A meu ver, o fundamental do cinema de Bela Tarr tem nestes dois personagens sua tensão e sua chave. A palavra com a qual a mulher se refere à dança é “harmonia”. Seu filme seguinte, uma pérola impressionante, entre a ingenuidade e a seriedade absurda, e também um de meus filmes preferidos, é exatamente sobre a tal da “harmonia”.

Na sequência inicial de Harmonias de Werckmeister, além de uma síntese exata do que é o personagem central, veremos como Bela Tarr se interessará mais por questões existenciais do que pelas ambientação sociais, econômicas e históricas, menos pela “danação” que constitui um determinado estado do mundo, e mais pela própria idéia de harmonia. É claro que estas sempre estarão presentes, mas a própria maneira de tratar o espaço será ligeiramente modificada. O filme é uma adaptação do livro de László Krasznahorkai, originalmente titulado Melancolia da Resistência. Verter o título já diz muito sobre as pretensões de Bela Tarr com este trabalho: investigar, junto de seu personagem, o que é a maior metáfora do filme – a afinação dos instrumentos em um sistema tonal semi-temperado executada pelo desconhecido, porém influente, Andreas Werckmeister.


A idéia de harmonia será introduzida e re-introduzida no filme em quatro personagens diferentes: Janös Valuska, Gyorgy Eszter, Tünde Eszter e o misterioso príncipe. Cada qual se relacionará com esta idéia de um modo distinto. Estranhamente, Bela Tarr irá condenar cada um destes personagens, respondendo a todas estas atitudes com um rigor extremo, “pincelando” todas as dificuldades de se estabelecer um conceito exato de harmonia, e retirando nosso chão de modo tão crucial, que qualquer luz de esperança nos parece distante.

O primeiro plano do filme irá pôr em tese todo o jogo de câmeras de Bela Tarr, a meu ver, um plano-síntese do que é o diretor húngaro busca exatamente com o cinema: Janos Valuska encena um eclipse utilizando o corpo de alguns bêbados. Primeiro, a luz. Então, a escuridão. Mas logo, novamente, a luz. A tese estética não é tão complicada assim: a eternidade se expressa através dos corpos. O misé-em-scenè é um meio de realizar, nas palavras de Janos, “uma explicação que até pessoas simples como nós poderão entender sobre a imortalidade.”, no movimento dos corpos, testemunhamos algo que nos ultrapassa, algo que nos transcende, algo de “sagrado”. E o que pode o homem fazer perante os corpos, senão observar esta revelação? Um cinema material, certamente. Mas também um cinema de observação. Observar os corpos, demorar-se em seus movimentos, é exatamente o acesso que a câmera tem à transcendência. A aproximação com Tarkovski, neste sentido, é aparentemente direta. Mas a misè-em-scene não é tão interessada em texturas cenográficas. O interesse de Tarr é sobre a dança dos corpos e o que esta dança expressa do espírito de determinado povo. Nada tão diferente do ethos hegeliano, mas ao invés de observar o comportamento, agora é pura matéria. Não mais a harmonia das danças circulares de Jancsó. Agora, bêbados que dançam tortos, ao som de temas melancólicos, e baleias mortas postas em exibição. Tudo isto invadido por um contraste intenso de luz e escuridão.

A luz e a escuridão serão cruciais em toda reflexão acerca da idéia de harmonia que Tarr construirá. A primeira cena já caracteriza o personagem central da trama, Janos Valuska, e suas vocações: sua busca é por uma harmonia celeste, uma harmonia que movimenta os corpos à sua volta, que lembra o conceito de Heráclito da harmonia inaparente. Valuska é, sobretudo, um idealista que acredita ser capaz de, através da encenação, expressar a harmonia do universo. Em determinado plano, Janos caminha em plano geral em direção a nada mais, nada menos do que o sol. A escuridão e as trevas se confrontam, a primeira como caos, a segunda como ordem, ambas igualmente destruidoras. A primeira incita violência e transformação. A segunda, controle e ordem. O embate entre estas duas forças, simbolizadas pela política Tünde Eszter e pelo Príncipe, o agente invisível nunca visto em quadro, é inevitável.

O vilarejo é o típico microcosmos através do qual Tarr construirá suas teses sociais: é um espaço pré-apocalíptico, com uma atmosfera árdua e escura. O apocalipse está anunciado desde o começo. E que atitudes tomar em relação a isso? Gyorgy Eszter se tranca em seu quarto obcecado pela perfeição harmônica, alheio aos problemas exteriores, defendendo sua inação política; Tunde Eszter coage a população a tomar atitudes contra a violência que se agrupa, é a expressão da ação política repressora e imediata; Janus Valuska tem em seu interesse maior observar o mundo à sua volta, como dito anteriormente, se interessa pela harmonia cósmica. O olhar, como dito anterioremente, é o momento possível de transcendência. Olhar, mais especificamente, a dança dos corpos (os momentos de transcendência do filme são caracterizados, seja pelo olhar de Valuska sobre o corpo da baleia morta, seja pelo olhar do grupo violento sobre um velho nu no hospital. Em ambos os casos, trata-se de olhar um corpo). Mas ninguém além de Valuska ainda se interessa por “olhar” as coisas à sua volta e tentar extrair desta experiência um sentido maior. Por esta aptidão, Valuska é convocado a “olhar” e “entender” exatamente o que é este levante violento incitado pelo agente obscuro, o príncipe. E observa a invasão a um hospital (a metáfora aqui vai ainda mais longe). O fim do levante se dá no preciso momento em que estes homens observam um corpo nu, velho e frágil, inativo (palavras estranhas para caracterizar o que é exatamente o mobilizador social). Ao fim do levante, o controle é tomado novamente pelas forças da claridade. Valuska cai como vítima: por ter observado o levante, é diretamente associado a ele, e sofre as conseqüências desta associação.
Todos os elaborados movimentos de câmera do filme não visam mais do que construir o que é para Bela Tarr a tese fundamental da harmonia – o processo harmônico é natural, e o ato político é uma imposição sobre um processo natural – como diz Gyorgy sobre Werckmeister, toda imposição política é uma mentira que irá, necessariamente, deslocar o movimento natural do universo, como Werckmeister o fez na construção de sua escala tônica. Porém, exatamente por esta intervenção, isto é, esta mentira, ou este deslocamento do curso natural dos sons, é que algumas das obras-primas da humanidade foram realizadas, e que determinados tons foram atingidos. A tensão final atinge esta espécie de fórmula: uma harmonia instalada em bases inteiramente falsas está em desacordo com o curso dos astros ou não? O que dizer disto se, em um circo grotesco que se aproxima, ao mesmo tempo que se encaminha um homem capaz de causar terror e violência, também vem uma belíssima baleia morta?

Toda esta idéia de harmonia se entrelaça, assim como Jancsó, nas sequências de dança. Os passos, porém, já não tem a mesma sincronia, e nem o tom é de esperança. Apesar disso, Janus Valuska reconhece que esta escuridão talvez também faça parte da harmonia celeste. Bela Tarr nos lança esta pergunta.