sábado, 25 de julho de 2009

A Força Bruta de Ford


Através da conquista do Oeste, uma temática dominante em grande parte da obra de John Ford, em The man who shot Liberty Valance, o diretor norte-americano esboça um tratado social – o que está em jogo é tanto a passagem da “liberdade valente” para a ordem social, quanto as bases sobre a qual se fundamentou a nação de Ford. A tradução veio inexata (chegou ao Brasil como O homem que matou o facínora), e além disso, a sinopse na caixa do DVD da Paramount responde de antemão uma das dúvidas fundamentais deixadas pelo filme. Re-assisti esta péssima cópia recentemente e, para além deste tecido político que narra detalhadamente a passagem de um estado a outro, em um debate que se insere na tradição de discussão sobre os fundamentos da sociedade, terminei o filme tentando explicar para mim mesmo em que ponto exatamente o filme me arrebata. É isto que desejo comentar.



O desenho que a trama traça é milimétrico desde o princípio: um senador retorna a uma cidade do oeste para o enterro de um antigo amigo. Um jornalista insiste em saber quem é o sujeito, que homem anônimo interessa ao lendário senador. É o gatilho para um flashback que irá rever o que foi o processo de conquista do Oeste e a instauração da democracia na América. Em princípio, o filme sugere uma dualidade entre Random Stoddard (James Stewart), jovem advogado que vai ao oeste no intuito de domá-lo através da lei, e Liberty Valance, o inviolável e selvagem durão que assombra com violência a região. Random vem instaurar um estado de civilização baseado em educação, organização constitucional e eleição, e depara-se imediatamente com a impossibilidade de realizar esta tarefa única e simplesmente através de seus próprios recursos. Pelo contrário, é obrigado a praticar tiro e recorrer à violência para impor a lei sobre Liberty Valance. Primeiro ponto: o sistema constitucional não se instaura a partir de seus próprios princípios, mas apenas a partir da tomada de poder com referência a um sistema anterior, no caso, o respeito adquirido pela violência (talvez o termo ideal seja valentia) do Oeste. Apenas através deste princípio é que Random pode enfrentar Liberty. Na formação da democracia americana, foi necessário um ato de violência - um conflito, por um lado, entre dois modos de vida, e, por outro lado, entre estado social e estado de liberdade selvagem. Enquanto Hobbes ou Rousseau falam de um “abdicar” da liberdade natural ao soberano em prol de um projeto social que dê outras espécies de garantias aos membros, neste ponto, Ford é um pouco mais incisivo – Mesmo que uns sejam seduzidos pelas proposições de um novo sistema instaurado, um estado só se transformará efetivamente através da lei do mais forte (esta que parece ser, para Ford, a única lei possível).

Mas o agente da transformação não é Random Stoddard. Fatidicamente, não é ele o homem que matou Liberty Valence. Em um primeiro momento, a cena do confronto final entre Random e Liberty nos abre esta dúvida – ferido e inexperiente, Random esta à mercie de Liberty. Ainda assim seria capaz de ferí-lo? Mais adiante, nos vem a confirmação: quem realmente matou Liberty Valance foi outro homem - uma figura onde se concentra o núcleo de todas as ações. Entra em cena o personagem que torna este filme em algo de realmente mítico: Tom Doniphon (John Wayne) – a terceira figura que tornará os meandros muito mais complexos do que uma estrutura tradicional de mocinho versus vilão.

São os sentimentos de Doniphon que o filme transpira, e onde a obra adquire maior intensidade – sua força bruta, seu destino trágico, sua compreensão da inevitabilidade do processo de transformação que se instaura naquele espaço, e seu reconhecimento da perda de seu amor (a garçonete Hallie) para Random. Doniphon não é como Random: reconhece a banalidade das leis escritas, que exigem braços fortes para aplicação. Também não é como Liberty: tem amor. Este amor é o suficiente para proteger o local. Também é o suficiente para salvar Random e matar Liberty no duelo final entre os dois, dando continuidade ao processo de democratização da América.

E o amor é o impulso para o movimento. Ao conquistar Hallie, Random também conquistará o oeste selvagem. Sem uma intenção esclarecida, Hallie será a razão da sobreposição de um modo de vida (o democrático) sobre outro (a selvageria) – o personagem feminino tem importância crucial, mesmo a um cineasta tido por tão machista – é o desejo de Hallie a propulsão primeira à transformação. Consciente e esclarecido quanto às consequências de seus atos, Doniphon apertará o gatilho e matará Liberty ao perceber que Hallie já não lhe ama mais. E o que lhe resta é uma dolorosa nostalgia de tempos passados. É esta nostalgia a tônica final do filme. Nostalgia bastante esclarecida, que compreende que o processo de transformação é inevitável e que o verdadeiro ato heróico de Doniphon foi ter “passado o bastão adiante”. A cada geração, seu domínio e modo de ser.

Doniphon será esquecido. Random, se tornará uma lenda e construirá uma carreira fundada um imaginário social propagado pelos jornais (a caracterização do universo civilizado em contraposição ao universo selvagem pode ser identificado, sobretudo, na diferença entre os personagens dos jornalistas). Ao revisitar o túmulo de Doniphon, o senador Random, acompanhado de sua esposa Hallie, será impregnado pela mesma nostalgia.

Em um de seus tratados, Rousseau nos fala de um estágio póstumo à selvageria solitária, porém anterior à civilização própriamente dita; uma espécie de estágio tribal, familiar, um ápice do qual a humanidade nunca deveria ter saído; Porém, o filósofo francês reconhece que atravessar este estágio rumo à degradação das virtudes é um processo inevitável (no máximo, retardável por um bom governo). Em certo sentido, John Ford compartilha dos mesmos ideais.

A capacidade que Ford tem de desenhar personagens simbólicos, mas tão concomitantemente humanos, e atingir um registro sincero e sensível, é o que acredito ser tão comovente em seus filmes. A cena do monólogo do jornalista bêbado é uma lição de cinema - após longa interpretação, há um erro na passagem de luz. Do mesmo modo, há diversas pequenas falhas de raccord, exposição, entre outros critérios técnicos. Porém, John Ford não viria a refilmá-las. Pois o essencial já está alí, diante da câmera, latejando sua força. E o resto é resto.



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