quinta-feira, 30 de julho de 2009

Reminiscências




(Re)visitando um lugar onde passado e presente se encontram.
Canção de infância revigorada. Ainda vive, tão diferente.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Mérito de Melville


Um mérito memorável de Melville é provar que as digressões literárias podem adquirir, além de uma força estética, ou de uma construção temporal, um caráter narrativo ou representativo. Ao menos para mim, é estranho pensar que Moby Dick é uma história sobre a tragédia do obcecado capitão Ahab, quando, desde a primeira página, e pela maior parte do livro, o que temos não são senão digressões do narrador Ismael. O ato é deixado em segundo plano, mas isto não ocorre em detrimento de uma exaltação das sensações possíveis em um conjunto de digressões. Pelo contrário, as digressões são tão representativas ou mais do que os atos. A tragédia de Ahab tem seus atos obnubliados, ou melhor dizendo, interessam apenas na medida em que constituem um contraponto ao verdadeiro interesse de Melville – uma literatura de digressões, referências e trocas. O mérito de Melville é provar através da literatura que a arte estética e a arte representativa não se contrapõe – apenas constituem dois lados de uma mesma mo
eda.

Martelo na tecla: Moby Dick não é um livro sobre Ahab, mas um livro sobre Ismael. O personagem central não é o capitão, apesar de ser ele o ditador de todas as ações no livro. Em uma obra onde as ações não servem de base para as digressões, de que nos serve a ação própriamente dita? Uma literatura onde não é em cima de um conjunto de atos que a escrita dilata ou contrai o tempo, explora a ambiência e os diversos sentidos possíveis; onde o acontecimento presente não é o único gatilho possível para a digressão; onde a escrita não tem amarras factuais, mas seu próprio espaço no mundo. – uma anti-tragédia? Mas se as digressões não visam sensações? As digressões não são fugas ao tema, mas um aprofundamento que constitui o próprio tema. O tema de Melville é, desde o título, rigorosamente claro: Moby Dick. Toda digressão remete somente a este mesmo objeto, de modo que a escrita persiste em não fugir à representatividade. – uma anti-estética?


A chave da obra de Melville não está em Ahab, o capitão obcecado pela enorme baleia branca. Sendo um pouco rigoroso, diria que Ahab é um personagem antiquado – uma figura shakesperiana, inclusive em seus monólogos. Um capitão trágico que centraliza entorno de si as ações a serem tomadas, visando sempre sobrepôr-se à figura divina e incontrolável que é a baleia. Não é senão o símbolo do narrador trágico, que guia o navio Pequod em direção à sua própria ruína ao enfrentar braço-a-braço com a grande baleia branca, símbolo do incompreensível, deste outro cujo modo de ser está para além de nossa compreensão, do objeto de toda busca e investigação que funciona apenas através de suas próprias leis. Ahab estuda seus movimentos, estuda seus trajetos, tenta compreendê-lo para adquirir controle sobre ele. Para derrotá-lo e ter poder sobre o destino. A obsessão deste narrador trágico é sua vingança: fez da vida que subjaz ao enorme corpo do Leviatã o seu inimigo, pois perdeu para ele sua perna. É a perna que perdeu, orgão de locomoção, que define o sentido dos movimentos. Um narrador de atos obcecado por se vingar de um objeto que lhe é incontrolável, pois este mesmo objeto lhe tirou o orgão que lhe daria algum rumo. Um ditador lançado no imprevisível da existência, buscando tomar controle dela, lançando sobre uma baleia branca suas representações, consciente de seu destino irremediável. – eis o desenho que Melville faz do capitão Ahab.

É verdade – Ahab é um mistério. O maior mistério de Ahab não se dá por nossa incompreensão de seu caráter, pois seu caráter é muito bem esclarecido. Mas, pelo contrário, nasce da consciência que Ahab tem de sua própria condição. Ahab não é apenas um obcecado em sobrepôr-se à natureza. É um obcecado que compreende sua situação e se vê sem possibilidades de transformá-la. Eis o seu grande mistério – por quê? Por que Ahab permanece Ahab? A isto, o livro não nos responde.

What is it, what nameless, inscrutable, unearthly thing is it; what cozening, hidden lord and master, and cruel, remorseless emperor commands me; that against all natural lovings and longings, I so keep pushing, and crowding, and jamming myself on all the time; recklessly making me ready to do what in my own proper, natural heart, I durst not so much as dare? Is Ahab, Ahab? Is it I, God, or who, that lifts this arm? But if the great sun move not of himself; but is an errand-boy in heaven; nor one single star can revolve, but by some invisible power; how then can this one small heart beat; this one small brain think thoughts unless God does that beating, does that thinking, and not I. By heaven, man, we are turned round and round in this world, like younder windlass, and Fate is the handspike.

Mas repito: a obsessão de Ahab não é a temática de Moby Dick. Também não é Melville um Shakespeare moderno, e tampouco o livro uma tragédia. E sua escrita não é somente uma sequência de atos cujo desfecho está definido de antemão. Pois a ação e representação constituem apenas um lado da moeda. Moby Dick é um prenúncio da morte de um ditador, mas também a fundação da redenção de um órfão.


Se o trágico shakespeariano não nos deixa um sobrevivente, o apocalipse de Melville ainda permite um Noé – é Ismael, o narrador que sobreviveu o percurso danado do Pequod para relatar os acontecimentos. Por não ter atuação direta nos eventos que sucedem no percurso do navio, sua presença é aparentemente oculta. Mas surge marcante na ordem do discurso; na intertextualidade, no modo de composição do livro – é através disto que conhecemos, de fato, o caráter deste personagem central. Pois Ismael não é um mero narrador de Ahab, um acompanhante da trama, tal qual Watson está para Sherlock Holmes – na ordem do discurso, esta diferença fundamental acontecerá exatamente pela estrutura em digressões.

Antes da histórica apresentação (“Call-me Ismael”), o livro de Melville nos lança definições e modos de escrita em diversas línguas do termo “baleia”, acompanhado de um conjunto de citações extraído de diversas obras da literatura universal (da ficcional à filológica) onde há, em algum sentido, uma referência às baleias. E as digressões, desde então, serão a matéria-prima do livro – digressões sobre baleias, sobre a arte da caça, sobre a arte de navegar, ou até sobre a cor branca. Mais impressionante ainda é que estas digressões não sejam devaneios, mas tem em sua substância um caráter diretamente representativo, senão simbólico – longe de um puro esteticismo, as digressões estão sempre a visar o tema, sempre a remeter a ele, simbólica, estética ou representativamente. Há uma identidade inaparente entre Ahab e Ismael: são ambos obcecados pelo mesmo tema. Porém, Ismael não é um agente com um destino final. É um dialético, que circula o tema e extrai dele digressões, mantendo-se sempre em relação ao mesmo princípio. Um entusiasta. Um homem apaixonado, e não vingativo.

A obsessão de Ismael é o que sustenta, envolve e renova dentro da literatura de Melville e, parece, nos relembra alguns princípios básicos da dialética: o tema não é um fim a ser exaurido, mas um princípio a partir do qual nasce toda digressão. A escrita visa algo, porém não faz deste visar seu envio, faz deste visar um ponto de partida que deve, à cada instante, ser renovado, revigorado – o tema é uma força constante que age sobre cada digressão.

Uma literatura de permutações e aberturas. Se fundamenta na troca de experiências. Ismael, por mais que erudito, “lança-se ao mar como um marujo, e não capitão”. Permite ser tocado e transformado pelo outro. Torna-se companheiro de Queequeg, o selvagem de estranhos rituais que, no primeiro contato, lhe ameaça de morte. Um trato de dádiva e recebimento, receber e retornar, ler e escrever. Isto, contudo, sem jamais perder o entusiasmo. Pois a dialética perderá seu rumo caso não se mantenha constantemente regida pelo mesmo princípio. Por esta possibilidade de trocar experiências é que Ismael será o personagem redimido: será salvo pelo caixão de Queequeeg, transformado em bote salva-vidas por seu capitão.

As constantes referências à literatura universal, além de indicar de que leituras nasceu o livro de Melville, remetem a este mesmo princípio. A escrita, de Homero ou Platão a Rabelais e Montaigne, ainda existe como algo vivo, como uma experiência a ser transmitida a cada leitura. É nesta cadeia de troca de experiências que Ismael-Melville deseja se inserir. A grande baleia branca, o leviatã, não é algo a ser conquistado em plenitude, pois sua natureza sempre nos escapa de algum modo. O que nos resta é um ato descritivo, de aproximação e simpatia. Em suma, é no processo de troca de experiência que há um crescimento do homem – é este o verdadeiro processo democrático, humanista e moderno.

Deste embate entre a obsessão de Ahab e Ismael nascerão princípios sociológicos, antropológicos, e metáforas das mais diversas ordens, da história da Inglaterra e dos EUA, da formação do liberalismo, do fanatismo, entre outros. O que me interessa, sobretudo, é evidenciar a diferença de comportamento.

Mas Ahab e Ismael não são apenas contrapontos. Algumas coisas são deixadas em aberto: Existiria o entusiasmo de Ismael, não fosse este suscitado por seu capitão? Haveria ele de se interessar por Moby Dick? Se não é um agente, um capitão, seria capaz de navegar na direção do grande Leviatã? O quão não foi a obsessão violenta e ditatorial de Ahab uma fagulha, uma abertura à possibilidade da obsessão jovial de Ismael? Ahab morre. Ismael vive. Mas haveria um Ismael sem Ahab? O quão, ao invés de meros contrapontos, não são Ismael e Ahab, no fundo, complementos?

Confesso que sofri um certo desânimo ao descobrir que, na encenação de Moby Dick, do Aderbal Freire Filho, que estreiou na semana passado, o personagem-narrador de Ismael-Melville havia sido suprimido. Isto quer dizer que a peça se fundamentará na tragédia de Ahab, e que as digressões talvez não atinjam pleno sentido. Sabendo que Aderbal Freire Filho montou Hamlet recentemente, não é difícil advinhar que a peça irá no sentido de uma tragédia shakespeariana. Por um lado, a obra perde sua latitude. Por outro, espero que, sendo Ahab o foco central, que a obra obtenha sucesso em responder à pergunta que Melville não respondeu: Por quê, conhecendo sua condição, Ahab permanece sendo como é? Se bem que é difícil surgir uma explicação do capitão Ahab melhor do que o personagem de House (sim, do seriado. Tenho preconceito com seriados, com TV em geral – não assisto. Mas este deve ser assistido de cabeça a rabo, sobretudo pelos amadores de Ahab). Até assistí-la, fico na torcida. Quanto à adaptação cinematográfica de John Huston, já esta prefiro nem comentar.

Confesso, também, que é com Ahab que tenho maior identificação. Sua força e sua solidão trágica, sua ambição e sua obsessão ao mesmo tempo calculista e descontrolada:

When I think of this life I have led; the desolation of solitude it has been; the masoned, walled-town of a captain´s exclusiveness, which admits but small entrance to any sympathy from the green country without - oh, weariness! heaviness! Guinea-coast slavery of solitary command! - When I think of all this; only half-suspected, not so keenly known to me before - and how for forty years I have fed upon salted fare - fit emblem of the dry nourishment of my soul.

Mas repito, pela última vez: Moby Dick não é um livro sobre a obsessão de Ahab, mas sobre o narrador Ismael-Melville. Não sobre monólogos, mas sobre digressões. Sobre seu entusiasmo e sua paixão pacífica. Sem Ismael, uma repetição hiperbólica de antepassados.


E foi também Ismael-Melville que transformou a minha vida de maneira tão verdadeiramente íntima nas últimas semanas. Sua sensibilidade, carinho e tranquilidade para com os objetos de seu entusiasmo. Sua capacidade de permutação. Em realidade, um órfão mais vigoroso do que qualquer filho. Ou do que qualquer pai.


sábado, 25 de julho de 2009

A Força Bruta de Ford


Através da conquista do Oeste, uma temática dominante em grande parte da obra de John Ford, em The man who shot Liberty Valance, o diretor norte-americano esboça um tratado social – o que está em jogo é tanto a passagem da “liberdade valente” para a ordem social, quanto as bases sobre a qual se fundamentou a nação de Ford. A tradução veio inexata (chegou ao Brasil como O homem que matou o facínora), e além disso, a sinopse na caixa do DVD da Paramount responde de antemão uma das dúvidas fundamentais deixadas pelo filme. Re-assisti esta péssima cópia recentemente e, para além deste tecido político que narra detalhadamente a passagem de um estado a outro, em um debate que se insere na tradição de discussão sobre os fundamentos da sociedade, terminei o filme tentando explicar para mim mesmo em que ponto exatamente o filme me arrebata. É isto que desejo comentar.



O desenho que a trama traça é milimétrico desde o princípio: um senador retorna a uma cidade do oeste para o enterro de um antigo amigo. Um jornalista insiste em saber quem é o sujeito, que homem anônimo interessa ao lendário senador. É o gatilho para um flashback que irá rever o que foi o processo de conquista do Oeste e a instauração da democracia na América. Em princípio, o filme sugere uma dualidade entre Random Stoddard (James Stewart), jovem advogado que vai ao oeste no intuito de domá-lo através da lei, e Liberty Valance, o inviolável e selvagem durão que assombra com violência a região. Random vem instaurar um estado de civilização baseado em educação, organização constitucional e eleição, e depara-se imediatamente com a impossibilidade de realizar esta tarefa única e simplesmente através de seus próprios recursos. Pelo contrário, é obrigado a praticar tiro e recorrer à violência para impor a lei sobre Liberty Valance. Primeiro ponto: o sistema constitucional não se instaura a partir de seus próprios princípios, mas apenas a partir da tomada de poder com referência a um sistema anterior, no caso, o respeito adquirido pela violência (talvez o termo ideal seja valentia) do Oeste. Apenas através deste princípio é que Random pode enfrentar Liberty. Na formação da democracia americana, foi necessário um ato de violência - um conflito, por um lado, entre dois modos de vida, e, por outro lado, entre estado social e estado de liberdade selvagem. Enquanto Hobbes ou Rousseau falam de um “abdicar” da liberdade natural ao soberano em prol de um projeto social que dê outras espécies de garantias aos membros, neste ponto, Ford é um pouco mais incisivo – Mesmo que uns sejam seduzidos pelas proposições de um novo sistema instaurado, um estado só se transformará efetivamente através da lei do mais forte (esta que parece ser, para Ford, a única lei possível).

Mas o agente da transformação não é Random Stoddard. Fatidicamente, não é ele o homem que matou Liberty Valence. Em um primeiro momento, a cena do confronto final entre Random e Liberty nos abre esta dúvida – ferido e inexperiente, Random esta à mercie de Liberty. Ainda assim seria capaz de ferí-lo? Mais adiante, nos vem a confirmação: quem realmente matou Liberty Valance foi outro homem - uma figura onde se concentra o núcleo de todas as ações. Entra em cena o personagem que torna este filme em algo de realmente mítico: Tom Doniphon (John Wayne) – a terceira figura que tornará os meandros muito mais complexos do que uma estrutura tradicional de mocinho versus vilão.

São os sentimentos de Doniphon que o filme transpira, e onde a obra adquire maior intensidade – sua força bruta, seu destino trágico, sua compreensão da inevitabilidade do processo de transformação que se instaura naquele espaço, e seu reconhecimento da perda de seu amor (a garçonete Hallie) para Random. Doniphon não é como Random: reconhece a banalidade das leis escritas, que exigem braços fortes para aplicação. Também não é como Liberty: tem amor. Este amor é o suficiente para proteger o local. Também é o suficiente para salvar Random e matar Liberty no duelo final entre os dois, dando continuidade ao processo de democratização da América.

E o amor é o impulso para o movimento. Ao conquistar Hallie, Random também conquistará o oeste selvagem. Sem uma intenção esclarecida, Hallie será a razão da sobreposição de um modo de vida (o democrático) sobre outro (a selvageria) – o personagem feminino tem importância crucial, mesmo a um cineasta tido por tão machista – é o desejo de Hallie a propulsão primeira à transformação. Consciente e esclarecido quanto às consequências de seus atos, Doniphon apertará o gatilho e matará Liberty ao perceber que Hallie já não lhe ama mais. E o que lhe resta é uma dolorosa nostalgia de tempos passados. É esta nostalgia a tônica final do filme. Nostalgia bastante esclarecida, que compreende que o processo de transformação é inevitável e que o verdadeiro ato heróico de Doniphon foi ter “passado o bastão adiante”. A cada geração, seu domínio e modo de ser.

Doniphon será esquecido. Random, se tornará uma lenda e construirá uma carreira fundada um imaginário social propagado pelos jornais (a caracterização do universo civilizado em contraposição ao universo selvagem pode ser identificado, sobretudo, na diferença entre os personagens dos jornalistas). Ao revisitar o túmulo de Doniphon, o senador Random, acompanhado de sua esposa Hallie, será impregnado pela mesma nostalgia.

Em um de seus tratados, Rousseau nos fala de um estágio póstumo à selvageria solitária, porém anterior à civilização própriamente dita; uma espécie de estágio tribal, familiar, um ápice do qual a humanidade nunca deveria ter saído; Porém, o filósofo francês reconhece que atravessar este estágio rumo à degradação das virtudes é um processo inevitável (no máximo, retardável por um bom governo). Em certo sentido, John Ford compartilha dos mesmos ideais.

A capacidade que Ford tem de desenhar personagens simbólicos, mas tão concomitantemente humanos, e atingir um registro sincero e sensível, é o que acredito ser tão comovente em seus filmes. A cena do monólogo do jornalista bêbado é uma lição de cinema - após longa interpretação, há um erro na passagem de luz. Do mesmo modo, há diversas pequenas falhas de raccord, exposição, entre outros critérios técnicos. Porém, John Ford não viria a refilmá-las. Pois o essencial já está alí, diante da câmera, latejando sua força. E o resto é resto.



terça-feira, 21 de julho de 2009

Bruma Campestre


Donde estás, oração telúrica? Vai-se,
sorve o vento e expira na fronte dum
Anjo maldito; fulguras na ponte para o
Infinito, e morre em bruma lírica. Vai-se.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Índios


Das margens, ó cinzas de amazonas, resplandesce
o brilho da chama dória, régia a reinar
na matiz das estrelas, e se encerra
em teu corpo nú, Belo como o firmamento,
num doce mergulho na porfíria do século.

Em teus olhos, pérolas se vão. Minguantes,
invocam serenos desejos. E, hirto, arremesso
um pedaço-de-pau. Vejo-lhe afundar, letárgica
derradeira imagem, no ataque se desfaz.
Então fugiste, Ofélia, selvagem aos mediterrâneos?

O que agora da sinagoga da tristeza? O que agora
do Panteão da inocência? O que nos lança
pra além dos murmúrios vagos dos riachos? O que brota
da selva a quem não sabe mentir? Resta-nos
as manhãs de piedade, as vergônteas do passado,
a força violácea do Sol, transpirando,
ainda intermitente, da última aldeia morta.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Debate sobre Arte e Verdade: Heidegger e Schapiro


Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger propôs um tratado onde pretendia fazer vir a luz a natureza íntima do que é a arte, sem imbutir sobre a arte quaisquer teorias filosóficas anteriores. A pretensão (demasiadamente pretensiosa certamente) não é propriamente um objetivismo radical, nem um distanciamento frio do objeto em questão. O método que Heidegger vai herdar e desenvolver da fenomenologia é de outra natureza: Heidegger reconhece que, na lida diária com as coisas, já estamos, de algum modo, nos relacionando com elas através de determinados pré-supostos; o que a filosofia Heideggeriana pretende é ultrapassar estes “pre-conceitos” imediatos e “deixar vir a luz” uma coisa em seu próprio modo de ser, “respeitando” o modo tal qual a coisa vêm a luz – exercício antes hermenêutico do que propriamente fenomenológico – Envolver-se com uma coisa, evitar impôr sobre a coisa teorias dadas de antemão, e deixar a coisa trazer à luz seu modo de ser.

Antes de se lançar nesta empreitada, o filósofo varre o caminho através de uma crítica das interpretação tradicionais da coisa, isto é, de como, na história da filosofia, até então, haviam entendido o conceito de “coisa”, o ser-coisa, ou a coisalidade da coisa: a coisa como substância com seus acidentes; a coisa como a unidade de uma multiplicidade de sensações; e por último, na qual o autor mais se detêm em análise, a coisa como síntese de matéria e forma. As críticas não são tão novas, sobretudo para quem já está minimamente familiarizado com a filosofia heideggeriana: A) a dualidade substância x acidentes deriva de uma tradução desenraízada dos termos gregos. Na realidade, tanto substância quanto acidentes co-pertencem a uma fonte mais originária que esta dualidade sequer desenvolve; B) as sensações parecem ser o acesso mais imediato às coisas, a rigor, o que é dado na sensibilidade. Porém, “jamais, na ocorrência das coisas, percebemos primeiro e propriamente, como ele pretende, uma afluência de sensações (...) Para ouvir um mero ruído, temos de deixar as coisas, afastar o ouvido de as ouvir, isto é, ouvir abst
ractamente”. Resumindo, de modo bem mais sintético: Mais próximos de nós do que as sensações estão as próprias coisas. Inclusive, para que se dê a sensação, é necessário que, de antemão, já tenha se dado algum contato com a coisa; C) A dualidade matéria-forma, desde o idealismo alemão tida como interpretação comum da coisa, enraiza-se na “serventia do apetrecho”. Apetrecho designa “o que é fabricado expressamente para ser utilizado e usado”. Heidegger aponta que, se é a “serventia do apetrecho” que determina tanto a forma quanto a matéria, este comportamento adotado frente ao ente visa a produção e, portanto, “não constituem, de modo nenhum, determinações originais da coisidade da mera coisa.” (A crítica se estende à idéia bíblica de conceber a totalidade dos entes como “criados”, o que aqui nem a mim, nem a Heidegger, interessa tanto). Há nesta crítica da matéria-forma como modo-de-ser originário da coisa um ponto fundamental que o autor nos recorda: A estética, enquanto corrente filosófica, fundou-se na concepção da arte como matéria enformada. Aqui, não se trata de um debate estéril ou divagações – o que Heidegger pretende é redirecionar a filosofia da arte para bases de outra espécie que não a pedra angular sobre a qual a estética a compreende. Este ataque à estética, à necessidade de erudição para a experiência artística, e sobretudo, o foco na intenção do criador, na figura do artista, é o que irá render a Heidegger a crítica do esteta Meyer Schapiro em The Still Life as a Personal Object – A Note on Heidegger and van Gogh.

A crítica de Schapiro peca por uma incompreensão radical das premissas Heideggerianas, e se executa inteiramente na descontextualização de uma interpretação realizada pelo filósofo alemão do quadro de um par-de-sapatos pintado por Van Gogh. Pelos desdobramentos de Schapiro, me parece que o mecanismo desta descontextualização ocorre não por má fé do esteta, mas por um real desentendimento do pensamento Heideggeriano. Em minha visão, é por conta deste desentendimento de base que a crítica não procede, e todo o esforço de Schapiro serve somente na medida em que corrigir seu desentendimento adquire validade e riqueza na medida em que re-atualiza a reflexão de Heidegger sobre a verdade da Arte e esclarece com relevância algo sobre a Arte.

Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger descreve os sapatos pintados por van Gogh como sapatos de camponês, um apetrecho que, pela obra de arte, revela a verdade de um mundo. Schapiro, através de um esforço biográfico do autor, irá demonstrar como, na realidade, o sapato pintado pertence antes a um homem da cidade naqueles tempos do que a um camponês. Segundo Schapiro, Heidegger projetou sobre o quadro suas tendências subjetivas a um pathos do primordial e telúrico, mantendo-se distante da verdade mesma da obra: “Alas for him, the philosopher has indeed deceived himself. He has retained from his encounter with van Gogh´s canvas a moving set of associations with peasant and the soil, which are not sustained by the picture itself. They are grounded rather in his own social outlook with its heavy pathos of the primordial and earthy. He has indeed “imagined everything and projected it into the painting.” He has experienced both too little and too much in his contact with the work. (…) Though he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed – indeed ‘the universal essence of things,’ ‘world and earth in their counterplay’ – this concept of the metaphysical power of art remains here a theoretical idea. The example on which he elaborates with strong conviction does not support that idea.”
O problema fundamental que Schapiro procura denunciar em Heidegger é que o autor supostamente deixou passar a presença do artista na obra (“Heidegger would still have missed an important aspect of the painting: the artist´s presence in the work”). Mas este deixar-passar é mais consciente e natural à reflexão do filósofo do que Schapiro parece querer. A idéia de autor tem como fundamento a intencionalidade do criador, que Heidegger, senão rechaça, põe as palavras em outros termos, perfeitamente cabíveis com o que virá depois em sua tese sobre a arte. Já no primeiro parágrafo do livro, isto é posto de modo bastante claro: “A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua proveniência essencial. Segundo a compreensão normal, a obra surge a partir e através da actividade do artista. Mas por meio e a partir do quê é que o artista é o que é? Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si mesmos, e na sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte.”

O apontamento é simples: sujeito e objeto, criador e criatura, se dão a partir de um mesmo princípio. Antes de artista ou obra de arte, se dá a própria arte. Mais do que isso: o artista se retrai no surgimento da obra que é, em essência, o pôr-se em obra da verdade. De fato, Heidegger define a arte como “o pôr-se em obra da verdade”. A arte acontece no momento em que uma verdade é posta em obra. Mas o que a crítica de Schapiro “deixou-passar”, interessado em validar a Estética como juiza última da arte, é exatamente quais as características desta “verdade” posta em obra na obra de arte.

De modo assertativo, Schapiro colocou que a obra mesma não responde à descrição que Heidegger faz do quadro de van Gogh, e baseia esta assertativa, por um lado, na intenção do autor, e por outro, no fato de que o objeto “representado” por van Gogh não condiz com o objeto que Heidegger julga estar ali. Quanto ao primeiro argumento, é muito simples: a obra de arte esta muito além da “intenção” do criador. Esta suposta intencionalidade remete apenas ao apetrecho, ao que é fabricado, tem solidez e serventia. Retomando a colocação Heideggeriana, a única intenção do artista na obra é suprimir a si mesmo, servir de meio para que a verdade seja posta em obra. A “intenção” do artista, na realidade, já nos diz muito pouco sobre a obra de arte, e menos ainda sobre a arte enquanto tal. O segundo argumento me soa tão antiquado quanto: o que é que o objeto supostamente representado por van Gogh nos diz sobre a obra? O que nos diz sobre a Arte? Sobretudo, há mesmo representação?

(...) será que com a proposição “a arte é o pôr-se-em-obra-da-verdade” se pretende reanimar de novo aquela idéia, em boa hora superada, segundo a qual a arte seria uma imitação e cópia do real? A reprodução do que está perante nós requer, aliás, a conformidade com o ente, a adaptação a este (...) A conformidade com o ente vale, de há muito, como a essência da verdade. Mas será que o que queremos dizer é que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de camponês que realmente está aí, e é uma obra porque consegue fazê-lo? De modo nenhum. Portanto, na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas.

Permanece a questão: o que é a verdade que a arte põe em obra? Já clarificamos que não se trata da representação de um objeto, nem de intenções do autor. Tampouco se trata da essência geral do objeto representado, como Schapiro chega a declarar: he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed. Na análise da Fonte Romana, Heidegger deixa isto claro: Aqui não está retratada poeticamente uma fonte de facto existente, nem é o reflexo da essência geral de uma fonte romana. O sentido mesmo da arte, da verdade posta em obra, que é o que faz a obra de arte ser uma obra de arte e o artista ser um artista, é de outra ordem ainda.

A obra de arte acontece através do combate entre Terra e Mundo. A verdade posta em obra vêm a ser através deste combate (no sentido grego do termo, um combate não sintético, mas de uma unidade que mantêm duas forças, continuamente em movimento, uma a superar a outra, porém sem que jamais nenhuma delas venha a se suprimir). Ao invés de matéria e forma, Heidegger nos propõe uma dualidade distinta para se compreender a natureza da obra de arte: Terra e Mundo.

A crítica de Schapiro parece novamente se confirmar ao demonstrar que o “mundo” dos camponêses que, segundo Heidegger, a obra de arte revela, não passa de uma projeção do filósofo, insustentável pela obra em si: The philosopher finds in the picture of the shows a truth about the world as it is lived by the peasant owner without reflection. Mas aqui, mais uma vez, o mecanismo é mal compreendido, desta vez, por um vício historicista do esteta, herdado das mesmas correntes metafísicas de onde herdou-se a dualidade matéria-forma. Segundo Heidegger, a obra de arte não revela um mundo que existe de antemão. Pelo contrário, ela instaura um mundo. Não há um mundo “antes” da obra de arte e, portanto, não há uma “verdade sobre um mundo” a ser revelada. No pôr-se em obra da verdade, isto é, na arte, um mundo, pela primeira vez, se instaura. Também, antes do acontecimento da verdade, posto em obra na obra de arte, não há sequer história: A verdade, diz-se com efeito, é algo intemporal e supratemporal. Porém, a verdade funda a história e, nesta medida, e somente nesta medida, é igualmente histórica. A arte é histórica somente na medida em que instaura a história pela primeira vez: Sempre que a arte acontece, a saber, quando há um princípio, produz-se na história um choque, a história começa ou recomeça de novo. (...) História é o despertar de um povo para sua tarefa, como inserção no que lhe está dado. (...) Como instauração, a arte é essencialmente histórica. Isto não significa apenas: a arte tem uma história, no sentido exterior de ela ocorrer também na mudança dos tempos, ao lado de muitos outros fenômeno, e de aí se ver sujeita a transformações e perecer, oferecendo à história aspectos mutáveis. A arte é histórica, no sentido essencial de que funda a História e, mais propriamente, no sentido indicado. Assim posto, a leitura Heideggeriana do quadro de Van Gogh, diferentemente do que pretende Schapiro, não visa descrever a verdade do mundo camponês revelada pela obra. Este ponto é fundamental: se há um erro na interpretação de Heidegger, trata-se de um equívoco histórico, e não um problema de entendimento sobre a natureza da arte. Apenas caso a verdade fosse um dado histórico e não uma origem em si mesma, é que tal crítica poderia se impor sobre o entendimento de Heidegger acerca da arte. Mas a verdade surge do nada, é uma origem que ocorre por um jogo de clareira e obscuridade. Não pode haver uma verdade posterior à história, se é o acontecimento da verdade a própria pré-condição da história. (Tanto o conceito de verdade, quanto o método de pensamento Heideggeriano, mais do que Platônico, é, sobretudo, pré-socrático). De fato, é toda a erudição acerca do passado, e o transporte da arte a um suplemento compreendido apenas como manifestação cultural, é que Heidegger põe de lado para nortear sua busca pela arte em seu próprio modo de ser.

Abandonemos por um instante os ataques incisivos de Schapiro e tentemos entender a arte como origem. Onde exatamente Heidegger quer chegar com isso? A arte é um pôr-se em obra da verdade. Este pôr-se em obra acontece através do combate entre Mundo e Terra. A Terra é “o infatigável e incansável que está aí para nada. Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo”, é algo que rejeita abrir-se, que permanece a escapar da claridade a todo instante, essencialmente insondável, e que resiste continuamente a qualquer tentativa de sentido, cálculo ou precisão. Sobre a Terra, e na Terra, é que um Mundo se instala. Porém, somente na medida em que a obra instala um Mundo sobre a Terra é que a Terra surge enquanto tal – não está aí, à luz, como algo de insondável, antes da obra. Somente a obra que “deixa que a Terra seja Terra”. O Mundo, em contrapartida, é da ordem do sentido, “o sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e onde de novo são interrogadas, aí o mundo mundifica (...) Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza.” Mundo e Terra diferem de Matéria e Forma de modo essencial – Diferentemente da Matéria, a Terra resiste qualquer imposição de sentido, e ao invés de se ocultar na Forma, ela vêm a tona no Mundo. Ao confrontar-se com o Mundo, a Terra demonstra sua impenetrabilidade. Matéria e Forma nos falam apenas sobre o apetrecho produzido. Sobre a criação artística, trata-se do combate entre Mundo e Terra.

Devemos ir com cautela por todos estes termos para compreender o mecanismo de Heidegger: Mundo e Terra acontecem apenas na medida em que há obra. Mas a obra também só acontece na medida em que há arte. A arte, neste sentido, é origem. Mas em que momento exatamente a arte acontece, se não é cristalinamente na obra? Não poderia ser na obra, se apenas a partir do momento em que a arte acontece é que há tanto obra quanto artista. A arte é o que vêm primeiro instaurar todo o demais, e ele exige mais do que uma obra para acontecer. É neste ponto que toda a tese de Heidegger se lança à frente das críticas de Schapiro – além de um criador, é necessário igualmente quem a salvaguarde: “Mas, quando uma obra não encontra os que salvaguardam, ou não os encontra imediatamente, de tal modo que eles respondam à verdade que acontece na obra, isso não significa de modo algum que a obra permaneça obra, mesmo sem os que salvaguardam. Ela permanece sempre, se aliás é uma obra, ligada aos que salvaguardam, mesmo se, e precisamente quando, só aguarda os que salvaguardam e espera alcançar a comunhão na sua verdade. (...) Se a arte é a origem da obra, então quer isto dizer que deixa surgir, na sua essência, a co-pertença essencial na obra dos que criam e dos que salvaguardam” A recepção da obra é tão fundamental quanto a criação no acontecimento da verdade pela obra de arte. Recepção não é aqui o termo adequado, mas a comunhão de uma verdade instaurada pela arte, uma instância no rasgão aberto pela obra. O rasgão aberto pela obra é “a juntura de traçado e risco fundamental, de diâmetro e contorno”. Somente quando há esta instância é que há arte, pois a arte é “a salvaguarda criadora da verdade na obra”.

A instância na obra, porém, não é uma decisão de um sujeito autônomo. Pelo contrário, é apenas na medida em que a obra surge estranha e solitária, que torna intranquilizante o que antes era tranquilizante, quanto mais aparentemente dissolve todas as relações imediatas com o homem é que “nos empurra e nos lança nesta (em sua) abertura e, ao mesmo tempo, nos arranca ao habitual. Seguir esta remoção significa: alterar nossas relações habituais com o mundo e a terra e, a partir de então, suspender o comum fazer e valorar, conhecer e observar, para permanecer na verdade que acontece na obra.” Na medida em que esta instância se dá é que podemos denominar um ente como obra-de-arte. Uma resposta a Schapiro emerge: O quadro de Van Gogh só é uma obra de arte na medida em que Heidegger se insere no espaço circunscrito pelo quadro e, nesta inserção, tem suas relações habituais com mundo e terra transformadas. Antes, nem depois disto, consiste a pintura uma obra de arte. A descrição do quadro, como aparece em Origem da obra de arte, é menos uma reflexão sobre o mundo cuja verdade é desvelada (como Schapiro assumiu), e mais um pontual comentário sobre como pode um mundo e uma terra erigir a partir da experiência artística. No fundo, trata-se de desvincular o acontecimento da arte da figura do criador única e simplesmente e compreender que “a instauração só é real na salvaguarda”.

Se faltou um critério histórico a Heidegger na compreensão do quadro de Van Gogh, foi por falta de erudição acerca dos processos de criação do quadro. Mas criação é apenas uma parte do acontecimento da arte – a salvaguarda é a outra. Enquanto Van Gogh pintar um quadro, isto não o classifica como arte há menos que a salvaguarda deste quadro instaure algo de novo, há menos que alguém se depare com este quadro e, neste deparar-se, aconteça uma verdade, uma reconfiguração do espaço, uma sacralização do mundo e um retrair da terra, um habitar desta pessoa em seu envio histórico. O mero conhecimento acerca dos processos de criação artística de Van Gogh, por mais que ajudem à compreensão de determinados mecanismos, não passam de erudição que nada diz sobre a natureza essencial da arte em seu próprio acontecimento.

É esta disparidade temporal possível entre criação e salvaguarda (digamos, por exemplo, mais de um século que se passou entre a pintura de Van Gogh e a leitura de Heidegger) que permanece pouco explorada no livro de Heidegger, uma tarefa que Gadamer assumiria para si. Sobre esta disparidade temporal, ainda será válido um comentário final: tende-se a pensar que a compreensão de arte heideggeriana não permite uma re-atualização da obra em outros tempos, isto é, que ainda haja arte em um quadro de Van Gogh hoje em dia. Isto ocorre por que Heidegger não considera que a arte habita a obra, mas o contrário – e o acontecimento da arte é pontual, instaura o novo no momento da salvaguarda – antes, nem depois disso, pode-se falar em obra de arte. Isto não quer dizer, necessariamente, que a releitura de obras-de-arte de outros tempos é impossível. Apenas que, para que ainda sejam obras, é necessário que executem o rasgão sobre o habitual. Ainda assim, a maneira como ocorre esta releitura é o que permanece pouco refletida, pelo menos em A Origem da Obra de Arte. Para concluir, um lembrete válido de se comentar: E, então, provém a verdade do nada? Sem dúvida, se por nada se entende a mera negação do ente, e se este se concebe como aquilo que habitualmente está aí disponível. (...) O projeto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua oferta a partir do habiual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí histórico. Segundo Heidegger, a arte é Poesia no sentido de um projeto poemático (e não no sentido da poesia de linguagem que, apesar disto, tem um espaço proeminente, visto que, para o alemão, toda linguagem é poesia). Este projeto poemático é na verdade um princípio que já, oculto, contêm o fim. A finalidade já existe latente no princípio, porém sem o meio. O princípio é um salto antecipativo em que, “o que ainda há-de vir já está ultrapassado, se bem que veladamente”. Ao que nos parece, a arte executa o desvelar deste princípio que, no fundo, é um levá-lo ao fim.

Como todo grande filósofo, as leituras de Heidegger exigem paciência e uma constante busca de compreensão de como funciona seu pensamento. E o que está em jogo aqui é a corrente da Estética, que se tornou dominante para as filosofias da arte, fundadas, segundo o alemão, em bases inteiramente falsas no que se refere à natureza mesma da arte. É a esta natureza que sua reflexão se remete, em oposição aos estudos acerca da vida, obra e processo de criação de objetos já de antemão definidos como artísticos, um conhecimento que pouco condiz com a experiência artística em si mesma.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O Lobo

Velaste cor-de-mate minha pele, apenas
para que o toque seja um trago, apenas
para que os dias de caça sejam
antiqüados, tal qual um limbo silvestre, onde
seja flecha ou seja lança,
o calo evite estragos.

Ainda lembras das almas inocentes, quando
ecoam os bastões nas tribos tropicais,
roubadas de suas fogueiras, ou das
matilhas, os vampiros ancestrais?

Revisitadas serão pela Beleza,
e um estrondo reverberará das nascentes,
pois nada é mais terrível do que o Mesmo,
ou nada é tão terrível assim.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Viagens e manhãs serenas





Terminando um texto sobre Schapiro e Heidegger que vou postar em breve, para não ficar apenas com poemas e vídeos...

Orestes


Quem roubou, em laicos interstícios, teus
heróicos lamentos, agora pios e murmúrios que,
na cidadela das almas, nem buscas ecoar?
O esquecido inefável ainda figura, à espera
dum mergulho inebriado; para esvanescer,
no vácuo, o último dos tiranos.

E a quem gritar tão vêemente elegia, se, porém,
entre a legião de anjos, apenas um rizoma,
e um graúdo burlesco, suspendem epifanias?
As ruínas de teus reinos não restam, pai,
senão às pretensas orações, às centelhas
de traições, aos amanhãs perdidos.

Onde estás teu filho, o imigrante, e pretende ele
retornar à casebre abandonada, às velhas amarras
da Eternidade, ainda para um dia a mais somar?

sábado, 4 de julho de 2009

Mares Enevoados


A espuma branca que escorre,
nas léguas de calmaria.
Marolas do serão.

Os pelicanos nas pedras
me indagam sobre a lisura
sobre o sorriso dos peixes.

O abandono do mastro
ancora um calor na pele
em noites de lua cega.

Aperte o nó. Suporte a ventania.
Um marujo exausto se afoga
em doces visões equatoriais.

Bombeie em vão. Recolha os salva-vidas.
Um tenso palpitar das velhas ondas.
O sal da maresia esconde o cais.

Para onde remavamos com tanto ardor
insistentes por mares enevoados?
Veremos se há peixes no final.