domingo, 16 de agosto de 2009

O processo de Moscou


Assisti Moscou há poucas horas. Assim que saí do filme, lembrei de uma situação que aconteceu há um tempo com alguns companheiros do cineclube: após uma sessão de um filme do Coutinho, estavam vagando pela rua e viram o próprio. Contaram-lhe da coincidência, e Coutinho foi suscinto e irônico na resposta: - O acaso é Deus. Fiquei me perguntando se também não foi o acaso um dos agentes definitivos que fizeram de Moscou um remédio às crises que eram o ponto de partida do projeto. Pois no filme de Coutinho, há outros dois co-diretores: Tchecov, escolhido por Coutinho como uma espécie de espelho; e Enrique Diaz, o outro ângulo da tríade que entrou em cena ao acaso.


Ao que me parece, o projeto consistia em filmar um processo inacabado da encenação teatral da peça Três Irmãs de Tchecov. Em uma das sequências iniciais do filme, a primeira reunião do projeto nos lança estas regras. Coutinho faz questão de esclarecer que escolheu a peça de Tchecov, porém foram os atores que escolheram o diretor teatral Enrique Diaz. E diz: “não quis lhes impôr nada”. Diaz, por sua vez, diz em sua primeira aparição no filme, enfatizando as palavras de Coutinho, que o projeto é tentar encenar em três semanas, um tempo mínimo, até onde puderem atingir da Três Irmãs.

Uma das tensões fundamentais da obra de Tchecov pode ser inferida da cena final da encenação de Tio Vânia, do argentino Daniel Veronese (Espia uma mulher que se mata), onde Sonia e Vânia trabalham – a primeira acredita que este trabalho é digno, pois é um exercício que os levará a algum lugar (o que existe é o sonho); o outro, derrotado, questiona se este trabalho o conduzirá ao ideal que nele existe (o que existe é o que está aqui). Coutinho se utiliza desta tensão para espelhar uma crise da Arte e do Cinema – possivelmente, tomando em conta que seu filme anterior Jogo de Cena, como Bernardet indica, é uma corajosa desconstrução de sua carreira de documentarista, o projeto ecoa mais amplo ainda, isto é: encontrar sentido em seu próprio ofício de documentarista, em seu próprio trabalho. Para onde levar o documentário após a auto-evidência de seus limites? Desmontadas as representações, para onde levá-las? Moscou é um lugar onde supostamente estivemos no passado, antes de irmos a uma cidade em crise, e para onde desejamos retornar no futuro – o passado e o futuro; de onde se vêm e o que se busca. Mas sabemos que não há tempo o suficiente para se atingir Moscou, isto é, não há tempo o suficiente para Enrique Diaz encenar As Três Irmãs. Tem-se apenas três semanas. Podemos parar por aqui – A crise deste projeto é almejar uma perfeição sabendo que o tempo é limitado; a eternidade em uma vida; Tchecov faz desta crise a tensão fundamental da ideologia comunista/modernista russa. Coutinho, por outro lado, faz desta a crise do aparato cinematográfico: os limites da câmera em captar o tema; senão uma crise ainda mais íntima e sensível da própria existência: os limites de uma subjetividade em se comunicar com outra, a insuficiência do discurso; e uma crise do próprio ofício: qual é o sentido de se agir, então?

Jogo de Cena é o projeto de uma desconstrução levada ao limite. Moscou, por outro lado, é um projeto de construção (Enrique Diaz, novamente citando Coutinho, deixa isto claro). Esta construção, contudo, traz consigo a certeza de que nunca atingirá seu ideal, pois não há tempo o suficiente para isto. Lançar este projeto é, por um lado, uma genialidade incomparável. Por outro, se Jogo de Cena exigiu coragem em se desconstruir, Moscou exige uma coragem ainda mais absurda em lançar-se o desafio de almejar se construir. É como um último suspiro de quem indaga acerca de sua própria possibilidade de existir. O resultado é, para mim, um dos documentários mais esplêndidos do século. Acaso ou não, fato é que Enrique Diaz caiu como uma luva para jogar este jogo.



Vi apenas uma peça de Enrique Diaz (A gaivota, tema para um conto curto), e a experiência foi forte o bastante. Sua familiaridade com o universo de Tchecov é anterior ao filme de Coutinho. Também, como o próprio afirma, seu trabalho gira em torno da desconstrução da representação e da construção do personagem, exercício também presente em Moscou, quando os atores, num primeiro momento, narram os próprios dramas (menção direta de Coutinho a jogo de cena?), e num segundo, buscam encenar o drama alheio. Alguns dos projetos de Diaz têm em si mesmo a marca de ensaio de uma peça. A própria peça é o ensaio de um grande clássico, uma busca dos atores de encontrarem uma natureza mais íntima daqueles personagens e a representarem, como que quase de improviso. Esta representação, porém, nunca é plena, isto é, os atores não “se tornam” os personagens. Pelo contrário, há uma variabilidade, fluidez e troca constante entre atores e personagens – os personagens surgem como forças presentes almejadas pelos atores em cada ato de representação, porém nunca atingidas, sempre embarreiradas pelo limite da representação. Enrique Diaz reconhece que existe um limite do ato de representar, e que um ator nunca se torna seu duplo perfeito. Daí, o seu caráter de ensaio.


Moscou segue a mesma tônica. É um filme de ensaio. Um filme de processo. A palavra ensaio nos remete à idéia de algo inacabado, ainda a ser trabalhado exaustivamente à perfeição da representação. A perfeição da representação, na peça de Tchecov, é a capital da Rússia. Mas nossa condição de existência não é Moscou – o limite está presente desde o princípio do jogo: para Diaz, o limite de tempo; para Coutinho, o limite do aparato. O processo é imperfeito, graças às limitações. Porém, é o único processo possível de construção. Coutinho faz seu discurso com brilhantismo refletindo-o em seu objeto, e em seu método. Este reconhecimento de limites perpassa o filme inteiro, lançando-se para diversos âmbitos: a memória, o discurso, a imagem.

Qual é o sentido de se construir algo, se a limitação impede a perfeição? Se tudo que resta é o processo? Para isto, é necessário dar-se a conhecer o que emana do próprio processo. Por isto a necessidade de Coutinho em estabelecer esta espécie de jogo. E o que emana do processo é algo de inefável – do processo é que temos um vislumbre dos personagens. Da peça de Tchecov. Do tom inebriante de Enrique Diaz. Do vigor e da beleza que capturamos aqui e alí das construções de Coutinho. Longe de um formalismo, trata-se de ouvir se a tal Moscou ecoa no processo instaurado. Em síntese, trata-se de observar em que medida os atores foram capazes de explorar seus personagens dentro de um rigor ensaístico, e se Diaz foi capaz de construir, neste mesmo processo, uma força estética e uma aproximação de qualquer ordem com a peça de Tchecov. Tal qual nas peças de Diaz, onde o espectador tem espaço privilegiado, e é figura decisiva na compreensão ou não do processo, apenas este pode julgar se desta tentativa de se aproximar de um tema, ou de um conjunto de personagens, lhe irá advir quaisquer epifanias sobre a natureza íntima destes.

O testamento final de Coutinho é de um entusiasmo absoluto com sua arte. Uma crença que seu ofício é válido simplesmente por que, em alguma medida, é capaz de atuar sobre um espectador. O processo é válido pelo que nele subjaz. Como afirma Diaz na conversa inicial com o elenco, “ainda que saibamos que não atingiremos o resultado final, iremos trabalhar com seriedade, sempre visando o resultado final. E veremos até onde podemos ir.” O tom é esperançoso. Poderia ser o último filme de Coutinho. Mas este reconhece a incessante necessidade de se trabalhar e de se vivenciar o processo, sua validade histórica, que está para além da possibilidade ou não de se atingir a capital russa. Uma réplica à tensão de Tchecov. Ao mesmo tempo, uma ode ao cinema. Um confiança que o homem ainda deve viver, ainda que com nostalgia e expectativa, ainda que não seja Deus. E que o documentário ainda tem caminhos a serem explorados, apesar da condição existencial de distância entre os homens, e a falibilidade do discurso, da memória e da imagem.

Moscou se insere em um espaço raro na história do cinema documentário. É um elixir quando este tipo de cinema já começa a parecer desinteressante. É também o melhor filme que vi de Coutinho.

Um comentário:

  1. Oi, tudo bem?

    Em setembro estreia no Rio a peça GORDA, uma comédia dramática de direção do argentino Daniel Veronese.
    Fizemos um blog para divulgar a peça, se tiver interesse em saber mais, acesse:
    http://gorda-a-peca.blogspot.com/

    Obrigada!
    Equipe da Gorda

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