domingo, 12 de dezembro de 2010

Joyceanas I: "Concerto di Giovanni"


A sonolência dos olhos afina
as tarrachas do banjo e, catatônico,
reconhece neste gesto mudo do mundo:
o que é verdade assombra.

Lume, dura-lume, paira tátil
no instante epifânico da morte.
Morte, seca-morte, ritornelo
Q´oramos pra que haja, nesta praia...

Passos, razos passos, poucos santos
no véu que rompemos no traço.
Conosco quebram ondas sozinhas,
nos passos, estamos sozinhos.

Sozinho, coração selvagem da vida,
Cão-de-raça em sobressaltos cintilantes
congela nas dunas cor-de-aveia,
convida a manta negra das estrelas,
espectro natibundo, o furor
dos fogos de artifício, dardejantes.

Explodem fogos messiânicos, quando
tudo é estático, perene no céu.
Malva-de-estrela-morta, retumtibitiante
faces pálidas, uvas alvas, violinos...

Natureza-morta, coração sevalgem da vida:
o que é verdade é sozinho.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Às pipas do Complexo do Alemão


Deve de existir algo além
do vidro moído nos dedos infantis,
nos gracejos indômitos dos papagaios
em um céu tão escarlate, sibilante
registrado no livro dos dias.

Quantos sonhos não deixamos
para trás...?

Entulhados na fábrica
de Pandoras, para vingarmos
a insulta injuriosa dos famintos,
a tarde entediada dos meninos,
que são todos como nós.

Nós, cavaleiros do céu,
empunhamos o carretel, e ajoelhados
oramos, bendito o fruto do vosso ventre
nesta cruzada pela supremacia
do azul que resplandesce, infinito.

Deve de existir algo além
do dourado flamejante das pipas,
do reino das barricadas, da ascenção
ao monte Olimpo, onde Zeus, o onipotente,
derrama lágrimas de cristal ao invés de relâmpagos
pelo filho herculoso, enterrado
na curva atlântica do Cruzeiro.

... mas te vi, e quis ser fraco.
Quis ser de papel. Troquei meu carretel,
pruma rede torta do pantanal, onde sonho
ao odor dos camalotes, sentir
o mãe-da-noite me invocar,
e o trem que cruza o Brasil
longínquo, passar.

Longínquo, passar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Fortaleza dos Céus


Vejo longe, aproximar-se, a tempestade
De constelações implodindo, novamente,
Chovendo em minha direção.

As paredes marmóreas, sibilantes
Tão frágeis de distúrbios conterrâneos
Q´esta fortaleza invisível viveu...

Escondido, do redoma, vejo o celeuma,
fogos de artíficios que terei de suportar,
solitário, novamente, neste forte.

Os olhos lívidos sorriem
de ternura ou desespero
calma ou vigilância.

No fundo, tudo há de perecer contigo.

domingo, 12 de setembro de 2010

Da lagoa de Araruama


O anzol estendido, silenciado
por um breve alento, tranquilo.

Veja a eterna imobilidade da superfície!
E os dedos mirins que boiam,
sem latência, de contida ternura.

O eco longínquo das saracuras se faz
outro ameno passatempo, tão pávido
e solene, na lisa constância da marola.

Veja os camarões migrando de barrete!
Num átimo único desta estação...
E, ainda, os peixes nos quais acreditavamos
Viajam em cardume por outra região.

Um cardume dançando, por outra região
E, ainda, o anzol estendido, nunca a tremular.
Sofre da mais sincera sapiência,
no infinito e turvado coração.

Não há nada que se possa fazer.

sábado, 11 de setembro de 2010

"mas, se éramos homens o bastante, admitiríamos que havia também dentro de nós, por mais débil que fosse, uma certa receptividade à terrível franqueza daquele alvoroço, uma vaga suspeita de que havia ali um significado, que nós - tão distantes da noite das primeiras eras - podíamos compreender. E por que não? A mente humana é capaz de qualquer coisa - porque tudo está nela, todo passado, bem como todo futuro. O que havia ali, afinal? Alegria, medo, tristeza, devoção, valor, ódio - quem poderia dizer? Mas a verdade... a verdade despia-se de seu manto temporal. Deixem o tolo embasbacar-se e estremecer - o homem verdadeiro saberá compreender e contemplará tudo sem pestanejar. Mas deve ser no mínimo tão homem quanto aqueles na margem do rio. Deve encontrar aquela verdade com sua própria verdade - com sua força inata. Princípios não vão adiantar. Bens, roupas, panos bonitos... que voariam na primeira sacudidela. Não. O que se precisa é de uma crença deliberada. Exerceria aquele demoníaco tumulto alguma atração sobre mim? Quem sabe? Muito bem, estou escutando, posso até admitir, mas tenho uma voz também que, bem ou mal, não pode ser silenciada. Naturalmente, um tolo, com seu pavor habitual e seus nobres sentimentos, estará sempre a salvo. Quem está resmungando? Vocês podem até imaginar, por que não fui à terra uivar e dançar? Bem, na verdade, não fui. Nobres sentimentos uma ova! Eu não tinha tempo."

- Coração das Trevas, Joseph Conrad

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Sacrifício

Reassisti poucas horas atrás O Sacrifício (1986), do Andrei Tarkovski – último e possivelmente o filme mais inquietante do autor, dono de uma das obras mais consistentes da história do cinema. Esta obra parece nos aproximar de temas existenciais-espirituais característicos de uma tradição européia específica que engloba obras como Diário de um pároco de aldeia (Robert Bresson), A Palavra (Carl T. Dreyer) ou Luz na Escuridão (Ingmar Bergman) - ao mesmo tempo, nos coloca frente àquele universo especialmente único do autor, místico e sombrio, natural e onírico, objetivo e subjetivo, oferecendo-nos, através da singular existência deste universo, respostas às crises mais fundamentais que esta tradição enfrentava.

O que nos dificulta o entendimento na obra do diretor russo são seus ideais artísticos, tão incomuns no século XX, e tão distante da maioria das experiências cinematográficas até então, que suas relações com outras películas ou mecanismos estéticos não nos vale senão superficialmente. No máximo, vemos ecos da narração de lendas místicas e mitos regionais realizada nos planos tableaus de Parajanov – diferentemente do ucraniano, porém, o personagem central do russo é sempre um sujeito em crise com sua própria espiritualidade, ou melhor dizendo, com a maneira pela qual esta espiritualidade (ou falta de) da cultura humana violentou um mundo místico e natural; não se trata do tradicional e já exaurido embate entre o ocidente e as demais culturas, mas do ocidente consigo mesmo, com aquilo que o animou em primeiro lugar e que, em determinado momento, simplesmente se perdeu. Isto quer dizer: Tarkovski nunca rejeitou a cultura européia-católica-ocidental. Pelo contrário, sempre a afirmou em seu mais pleno sentido, ou seja, no sentido inaugural. E em seu mais pleno sentido, é uma cultura que enxerga o mundo como um espaço de mistérios e milagres.

Para não ser raso como uma bacia de lavar pé, acredito que seja necessário ir atrás de referências artísticas extra-cinematográficas que o próprio autor não nos esconde, mas que pouco tem haver com a reflexão e intenção da arte do século XX (o que, naturalmente, tende a nos afastar do próprio cinema) – tem haver com a arte sacra e iconoclasta do mundo medieval, com a música de Bach, a pintura de Da Vinci, e a poesia de Rilke ou Trakl, e, naturalmente, com Arseni Tarkovski, seu pai – é, sobretudo, referente a um momento em que a arte teria a obrigação de executar um milagre em conta do sacrifício do próprio artista. – Há semelhanças nas finalidades de um Van Gogh que corta a própria orelha e nas de um Domênico ao atear fogo ao próprio corpo em praça pública.



Por outro lado, Tarkovski reconhece que estes ideais artísticos devem ser re-aplicados no século XX, através de um homem já absolutamente desencantado com sua possibilidade de operar um milagre, que se tornou um cientista dominador e assustado, um ateu cínico como o escritor de Stalker ou a tradicional e egoísta família russa em sua casa de campo retirada diretamente dos contos de Tolstoi, Dostoievski ou Tchecov (suas demais influências vêm da arte russa do final do século XIX e começo do século XX) que observamos em Sacrifício. Nisto reside seu maior paradoxo - Quem é este sujeito, e como ele deve operar este milagre? Em vista do que e através do quê, quando o desencantamento da história de toda civilização humana já não nos permite sequer acreditar na potência do homem de superar seu próprio estado de ser através da fé no milagre e no mistério dos acontecimentos do mundo? O personagem central de praticamente todos os filmes de Tarkovski é este homem em crise de fé que se põe em movimento em busca de superá-la – a fábula que Alexander conta a seu filho no princípio de Sacrifício, sobre o homem que deve regar a árvore morta até que ela esteja novamente viva, reitera esta condição e eterna necessidade de resgatar o milagre primordial.

Tarkovski dedicou o filme a seu próprio filho: no contexto específico de Sacrifício, o filho de Alexander passa por um momento onde, devido a uma operação na garganta, ainda não pode falar. Durante seu repouso, anuncia-se a possibilidade de uma catástrofe que só pode ser impedida por um milagre que cabe a Alexander executar através de seu martírio, abdicando de seus pertences, de sua família, de sua casa, de seu filho, e até de sua sanidade – o gesto redentor que irá lhe consumir. A partir daí, por suas muitas vias, àquela maneira tarkovskiana brilhante de unir subjetividade e objetividade em um registro enigmático, que salta da intimidade à frieza num instante, e dificilmente se permite perceber o ponto-de-vista da narrativa, sempre de ambiência carregada e de simbolismos fechados, herméticos, o filme passa a elaborar a perspectiva íntima de Alexander em relação a este gesto, tendo como única finalidade a salvação de seu filho, a dádiva da palavra ao “pequeno homem”, e a possibilidade de indagar o por quê das coisas – o filme termina com o filho deitado sob a árvore que plantou junto do pai e perguntando em sua primeira emissão de voz após a operação: “No princípio, era o verbo. Por que, pai? Por que?”

A impressão que temos é que todo o trajeto de Alexander não visava senão oferecer-lhe a possibilidade de fazer-se esta pergunta – a ambiguidade do “por quê”: ao mesmo tempo em que põe em cheque a verdade de uma proposição, também procura compreender a verdade que subjaziria a esta proposição para renová-la. A grande dedicação que Tarkovski faz a seu filho (ou o que lhe é doado com seu sacrifício) é a oferenda da possibilidade de ter o quê, sobre o quê, e a partir do quê indagar, de ter, em síntese, uma voz. Dádiva esta que o diretor russo também recebeu de seu pai, o poeta Arseni Tarkovski que, certamente, permaneceu, de seus primeiros aos últimos filmes, como a referência central.

Mas há algo ainda sobre isto a se entender, para que não passamos ao largo da questão: Sacrifício é um filme bastante raro na história do cinema no que se refere à abordagem da relação pai-filho. Possivelmente, por ser uma arte “nova”, foi costumeiro que o cinema, desde seu princípio, nesta relação, se tomasse a perspectiva do filho, normalmente, um filho bastardo, herdeiro de Caim. Apesar de não ser o grosso, ainda há um punhado generoso de filmes que tomam a perspectiva do pai (penso, por exemplo, em Ozu, Visconti ou João Cesar Monteiro). Mas o pai sempre surge como a figura esquecida, com impulsos de morte, que, na melhor das hipóteses deveria ser resgatada pela geração posterior. Neste ponto, Tarkovski assume um discurso um tanto quanto radical: A possibilidade do potencial criativo de uma nova geração é dádiva do pai, e somente através de seu gesto efetivamente criativo é que dá-se a possibilidade do filho agir no mundo. Através de sua armação de figuras míticas, o essencialismo de Tarkovski nos carrega, reconfigurando-se à cada plano e sequência, pelos confins deste gesto criativo do pai.

E o que talvez seja o mais importante de tudo: o gesto criativo nasce da percepção do Apocalipse, dos problemas materiais e históricos que vive um mundo. Quando, em seu aniversário, descobre que o mundo irá acabar, Alexander diz a si mesmo: “aguardei toda a minha vida por este momento”. É então que põe-se a rezar a fim de resgatar a fé em si mesmo, em um plano-sequência magistral, bergmaniano (contudo, sem suas conotações críticas), que termina em um primeiro plano de seu rosto a pedir a Deus pela salvação; É então, também, que misteriosamente descobre o como deste ato, e precisa fazer amor (em uma relação de elevação mística) com aquela que detêm o instinto materno de acolher seus anseios; É então que se sacrifica em nome deste ato, e põe em chamas a própria casa de campo que habita (o fogo, elemento recorrente no final de seus filmes), origem de todo o mal, aceitando cometer um sacrifício não para restaurar a ordem vigente das coisas, mas para dar a possibilidade de que seu filho seja um outro.

Vendo este filme, só podemos sentir saudade de um tempo em que talvez nunca tenhamos vivido, onde a arte nascia da necessidade de enfrentar uma crise do mundo, mesmo aos custos da própria alma, e não de um desejo contemporâneo vago, egóico, inefetivo e descomprometido de se expressar. Ah, estranha nostalgia desta espécie de homem...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Êxodo

A secura que vem do Éden,
nas áspides, embalsama os seus desertos.
Quando nós, despertando
com preguiça, ainda a erigir
os monumentos do porvir,
já brincavamos com seus restos...

... dórios, como os pequenos
Idílios que vivemos
nas manhãs de primavera.

domingo, 16 de maio de 2010

Trailler

Completando a divulgação aqui no blog do meu primeiro longa-metragem, "Mergulho".

domingo, 25 de abril de 2010

"And here is Zizek, claiming that Post-Theory

... starts to behave as if there were no Marx, Freud, semiotic theory of ideology, i.e. as if we can magically return to some kind of naivete before things like the unconscious, the overdetermination of our lives by the decentred symbolic processes, and so forth became part of our theoretical awareness.

Zizek can´t entertain the prospect that ideas can be "part of our theoretical awareness" and still be invalid. Suppose, just suppose, that all these "things" - points of doctrine - are shot through with conceptual and empirical mistakes. This is what Prince, Carroll, and I are saying. We don´t ignore this theory; we criticize it. Being skeptical about weak theories isn´t a return to innocence. It´s an advance; it can cast out error. The task is not to call us naive but rather to show that the unconscious, the overdetermination of so on and so forth remain valid ideas. The way to show this is not by waxing nostalgic for the days when everyone read Althusser, but by overcoming our criticisms. Yet in Zizek´s hands, confirming Carroll´s objections once more, Lacanian theory functions as a set of axioms or dogmas rather than working ideas to be subjected to critical discussion.

Post-Theory argues against the very idea of Theory and supports the idea of theories and theorizing. Theories operate at many levels of generality and tackle many different questions. Theorizing is a process of proposing, refining, correcting, and perhaps rejecting answers, in the context of a multidisciplinary conversation. But for Zizek, the unconscious, the overdetermination of our lives, and all the rest is Theory entire and whole. No intelectual activity (save "historical research") lives outside it, and it can be discussed only by those already accepting the premises of its sacred texts. And once the only correct Theory is packaged with the only correct political attitudes, you have a powerful weapon against anyone who differs. FRT confirms Carroll´s claim: 'The theory has been effectively insulated from sustained logical and empirical analysis by a cloack of political correctness'. "


Assino embaixo das excelentes palavras de Bordwell.

O que mais comum de se ver hoje em dia são lacanianos-marxistas assumindo teses como posturas políticas, sem qualquer visão crítica quanto às próprias pré-suposições, submetendo o mundo empírico a conceitos como grande outro, inconsciente ou processo histórico, organizando-se em movimentos e escolas nostálgicas sem perceber que todo o academicismo que geram não tem efetividade alguma no mundo, e que as suposições que decorrem das teorias que idolatram não estão dando resposta nenhuma ao mundo senão um senso utópico e ultrapassado de união.

Qualquer um que não assume seus pontos de partida ontológicos criados pela percepção da vida como tal é inocente e "ainda não chegou lá".

Ironias a parte: A dialética não é um processo histórico ontológico - é apenas um dialogo de troca que visa responder problemas que vem e vão; O grande outro não é um fundamento opressor com o qual "estamos sempre em relação", mas apenas mais uma maneira de se enxergar a relação do homem com o mundo (da qual eu, estando no mundo e vendo os problemas que ele enfrenta hoje em dia, só posso discordar).

Quando vejo toda esta pretensa intelectualidade, só posso pensar: para quê traçar um caminho longo e árduo se você já discorda com os termos estabelecidos no ponto de partida?

Fala sério, mermão. Esta brincadeira de desejar um fundamento único (e, no final "vazio", por que só isto realmente que ele pode ser) para todas as coisas só é interessante se o produto gerado é interessante - e tenho dificuldade de entender por que diabos o processo histórico e o grando outro são interessantes em tempos que já provaram, através de sua própria desolação, que o que o homem precisa hoje em dia não é tanto uma tomada de poder político ou redistribuição dos meios de produção, ou sessões de psicanálise contínuas afim de que possa tomar consciência de sua condição e das relações de opressão que o envolvem.

Precisa, na realidade, readquirir intimidade com seus próprios pensamentos e dúvidas; precisa de filosofia desinstitucionalizada; aquela do flauner que observa o mundo a sua volta, em seus traumas e contradições, e busca continuamente re-elaborá-las, para si e para os outros, a partir de si e dos outros também. Precisa ser o que seus próprios olhos são, e como são, em meio ao mundo, dos objetos em direção à abstração, e não da abstração em direção aos objetos, ou, pior que isto, da abstração à abstração.

Abaixo a Lacan, Marx e Nietzche.
Levanto a bandeira de Sócrates, Rancière, Joyce e Melville.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um trecho de Faulkner


"Eu não desejava mais e não podia aceitar menos, pois aos dezenove anos já devia saber que a vida é um instante contínuo e perpétuo, onde o véu-de-arrás se estende dócil e até mesmo alegre sobre o-que-tem-de-ser, iluminando a verdade mais nua se nós tivermos coragem, formos corajosos o suficiente para (não sabios o bastante: não há necessidade de sabedoria) rasgá-lo. Talvez não seja a covardia que não nos deixe encarar essa doença a corroer a fundação básica desse esquema factual, onde a alma prisioneira, vertente-miásmática, se torce sempre em direção ao sol, repuxando suas tênues artérias e veias aprisionadas e aprisionando, por sua vez aquela centelha, aquele sonho - o sonho que, enquanto o pleno e esférico instante de sua liberdade se espelha e repete (repete? cria, reduz a uma diminuta esfera frágil e iridescente) todo o espaço e o tempo e a terra maciça, despojos da efervescente e miasmática massa anônima que em todos os tempos não tem apreendido a generosidade da morte como uma recriação, uma renovação, e então morre, desaparece, vai-se: não sobra nada. Mas é aquela sabedoria verdadeira que pode compreender que há um tinha-de-ser mais real do que a verdade, e sobre o qual o sonhador ao acordar não se pergunta: "Será que foi apenas um sonho?" Pelo contrário, grita alto para o próprio Céu: "Por que fui acordar? Agora nunca mais voltarei a dormir de novo?"

Absalão, Absalão - Faulkner

terça-feira, 6 de abril de 2010

O carro de Kiarostami


O elemento recorrente do carro na filmografia de Kiarostami não denota um conjunto de fetiches, como foram os clichês hitchcockianos, ou um artifício simbólico, como os signos sócio-históricos abrangentes de Angelopoulos, mas um sentido de outra ordem, muito mais contemporâneo em sua premissa. O carro não tem conotação representativa de qualquer natureza – não é símbolo, arquétipo ou alegoria, nem aponta para sequer uma figura ou idéia que esteja além do que se vê – por outro lado, seu recurso tampouco nasce de um interesse meramente estético ou formalista. O carro de Kiarostami é uma montagem, um set up, ou um jogo que dispõe os elementos iniciais em uma formação específica, afim de que o misè-en-scene encontre nesta montagem um valor que só através dela pode encontrar. Assim, a ferramenta é o recurso de aproximação/distanciamento, e nunca um filtro que distorce a realidade que aborda. O que quer dizer – não interessa tanto a imagem do carro em suas camadas possíveis, e tampouco a distância que o carro gera entre o espectador e o real, mas o resultado deste jogo de isolar um homem do mundo em seu interior, o mise-en-scene que brota desta estrutura tomada como ponto-de-partida. O que só me leva a crer que o que adquire maior relevância no cinema-carro de kiarostami não é em hipótese alguma o real, termo que parece nem existir no vocabulário do diretor iraniano, mas, em definitivo, o resultado de uma determinada forma de misè-en-scene. Porque, no fundo, esta mesma estrutura parece nos dizer categóricamente que o cinema não é nada além de misè-en-scene.


A estrutura em carro tem seu envio histórico, ainda que seu berço não se resuma a isto: refere-se a um meio de modernização e aproximação territorial, de supressão das distâncias. É como um trem, porém dirigido pelo indivíduo auto-centrado. Os road movies norte-americanos da década de 70 procuraram nele uma possibilidade de liberdade, deslocamento e busca – o espírito yankee sempre foi um de tomar a liberdade individual como cerne e motor de qualquer processo histórico, desde o desenho de sua constituição onde o estado é anti-paternalista e o indivíduo luta contra o leviatã, as vezes vencendo, as vezes perdendo. Outras culturas enxergaram o mesmo evento como um problema. O tema remete a uma crise que se instaura com a globalização e criação de uma rede universal de comunicação, recorrente em outros filmes da década de 90, como O passo suspenso da cegonha de Angelopoulos, ou A Fraternidade é Vermelha, de Kieslowski – enquanto para Kieslowski a questão é teológica e para Angelopoulos é material e sócio-histórica, para Kiarostami, é antes de tudo uma questão de dispositivo, de meio. Kiarostami reclama ao carro a imagem-dispositivo do que se tornou o espaço público na vida moderna, em sua brutal ausência de compartilhamento e experiência – o veículo evidencia a distância entre o homem e o mundo, e a solidão que desta distância resulta. Utilizando-o como espaço de um esquema cinematográfico é que o diretor iraniano procura encontrar o quão próximos e o quão distantes, o quão frios e o quão humanos os homens se tornaram efetivamente por conta da introdução deste “meio”.

Em termos estritamente cinematográficos, suas crenças já haviam sido formadas em seus filmes pré-carro. Close up anunciou o princípio recorrente em sua carreira de buscar registrar estados de alma e emoções humanas em seu estado mais vívido. Contrapondo-se à figura do jornalista que é incapaz de pausar passivamente ao lado de um movimento do mundo, e que exige um primor técnico de áudio e imagem que pouco tem haver com emoções humanas, Kiarostami recorre ao plano-sequência afim de deixar correr no plano um estado de alma. Mas o plano-sequência não é um posicionamento ético neo-realista ou uma questão ontológica baziniana que busca abrí-lo às forças do mundo que escapam à intenção do ser humano. É um recurso cinematográfico tão expressivo quanto quaisquer outros, que traz em sua essência determinadas possibilidades do narrar associadas a uma aproximação íntima entre o aparato e o evento no mundo que o artista intenciona observar. O recurso do close up, mote do filme, é uma sucessão de primeiros planos balazianos onde as emoções de personagens, fictícios ou não, vem à tona e podem ser acompanhadas em “tempo real” para que possam ser entendidas em sua natureza mais própria.


O Gosto das Cerejas
aponta os limites de uma certa estrutura de vida no Irã dos anos 90, e realização cinematográfica dentro de um conjunto de valores. O carro surge como um vetor que movimenta território adentro um personagem altivo, isolado do mundo, capaz de estabelecer com o próximo nada mais que relações capitalistas contratuais. Busca pagar alguém para realizar um ato que está fora de quaisquer valores ético-religiosos, enterrá-lo após um suicídio de motivações taciturnas – “Você pode até entender o que eu sinto”, ele diz em determinado momento, “mas não pode sentir o que eu sinto”. A crise exposta é a do paradoxo da imagem elaborada a partir da janela de um carro – o carro como uma estrutura de vida moderna que observa a fluidez do mundo sem jamais ser capaz de se relacionar com o grande deserto bege e árido que está do outro lado. O carro é uma estrutura de relação com o mundo e de produção da imagem e da arte cujos limites de elaboração são evidenciados por Kiarostami. Não se trata de condenar o piloto tanto quanto de acreditar que seu modo de estar no mundo deve, para seu próprio bem, hibernar – não sabemos se comete suicídio de fato ou não. Apenas que há um limite claro do que é possível se observar, compreender e vivenciar a partir da janela de um carro, a partir de um dispositivo e recurso, e que este dispositivo deve pôr-se em estado de espera ou morte em determinado momento da história quando houver exaurido sua potência, para que possa, em outro momento, renascer com vigor. Como as amoras e as cerejas, é uma questão de estações que vêm e vão.

A alternativa é a ferramenta digital, um outro aparato capaz de se aproximar do mundo e observá-lo por outra perspectiva – abruptamente, os desertos áridos se tornam campos verdes repletos de vida, e a fria montagem em plano-contraplano é substituída por planos conjuntos de trabalho e vivência compartilhada, aproximada. No fundo, é menos uma questão de postura do homem e mais uma questão de dispositivo, e de como um determinado dispositivo evoca efeitos específicos no misè-en-scene (e impõe certas condições de trabalho). Sobretudo, de como um meio é mais apropriado a dar respostas a certas questões do que outro e, por isso, é mais apropriado a reverter certas situações épocais, como uma fruta está ligada à cada estação.


Seu filme seguinte, E o vento nos levará, não leva a reflexão adiante tanto quanto a desloca para uma espécie de cinemanovismo afim de, sob as mesmas bases assentadas, dar a conhecer qual é efetivamente a crise que um “mundo em redes” vivencia e os confins que a comunicação de massa é incapaz de compreender. Um jornalista vai a uma vila para fotografar um ritual de morte, e a premissa é arrojada desde as sequências iniciais – o fotógrafo deve largar o carro para trás para conseguir acessar o vilarejo. Também deve aguardar a morte da figura real para que possa fotografar seu fantasma. Nesta espera é que o personagem-central consegue se relacionar com um modo de viver instaurado naquela comunidade, e com a própria vida em si mesma. A informação global é aquela obtida pela janela de um carro, e que não carrega senão a morte do objeto do qual deseja se aproximar, quando o entendimento da vida está, pra além de questões morais, em um espaço acessível somente a pé, em um tempo de espera que recusa deslocamentos ou antecipações.



É principalmente a partir de então, em filmes como Dez, Shirin ou Five, que o carro perderá todo vestígio de conotação representativa e se tornará pura e simplesmente uma armação de misè-en-scene – o carro não quer dizer nada além do que ele é em si mesmo - um mecanismo que busca o mesmo que era procurado em Close up – estados de alma e sentimentos humanos - porém agora embarreirado pelas condições iniciais impostas pelo ethos de um período histórico onde o carro, mais que símbolo, é a pré-condição. Encontrar a humanidade dos relacionamentos e sentimentos dentro destes parâmetros virtuais contemporâneos se tornou sua possível obsessão, uma meta que o lança à uma investigação longe de se exaurir, que progride, adiante, em busca de respostas a perguntas que ainda fazem sentido, pondo em cena personagens novos à cada filme, para que um sistema como este, tão dependente da originalidade e profundidade de suas figuras, não se torne um repeteco, e que traga os frutos adequados enquanto ainda for sua estação, enquanto seu sistema ainda se sustentar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Nuvens de Março


Que brilho intermitente surge
da bruma de nossos sonhos
quando emerge a tempestade
no verniz de teus olhos?

Para onde vão os mortos
enterrados nestes campos
verdejantes, litorâneos?

Chovem lágrimas, relâmpagos
das nuvens de março.

Vi teu Deus andando
de muleta, nas veredas
tão perdido quanto nós
tão perdido quanto nós.

Vem que aqui a tarde é calma
e nada de terrível habita
quando, de mãos dadas,
apoiamos nossos ombros
para andar na escuridão.

Idades



A tradução do título do album seria "Declaração de dependência". E esta é a primeira faixa. Impressiona que o rock só tenha conseguido efetivamente desmontar os princípios da sociedade burguesa a partir do momento em que ele acabou. É como a história do direito desde o século XVI - tentando estabelecer contratos sociais e leis por 5 séculos, o que vemos é a história da formação de uma sociedade cada vez mais neo-liberal, onde a lei parece propôr ao mundo o seu exato oposto. No funo, tudo se opera por opostos, e é necessário que o rock execute algo mais do que a anarquia para que vejamos suas verdadeiras metas atingidas: a desconstrução é só o princípio de algo que deve ser re-elaborado.

O que mais impressiona é como atualmente surgem artistas pós-civilizatórios, em cujas obras parece que a única verdadeira opção para o homem contemporâneo seja fugir para o mato e re-encontrar o sentido de conexão entre homem-mundo (e homem-homem) perdida, quando a vida em sociedade só se tornou um fenômeno traumático - vide Blissfully Yours ou Mal dos Trópicos, do Apichatpong; Eureka, do Shinji Aoyama; ou até o processo de composição do For Emma, do Bon Iver.

Tenho a convicção de que esta perspectiva pós-civilizatória é algo de absolutamente novo na arte (ao contrário do pop, não gera a inspiração coletiva, ao contrário do rock, não desmonta um estatuto vigente - pelo contrário, pretende falar de um para um, o que será sempre mais do que dois). A filosofia, a sociologia (e o direito) e a psicanálise não parecem ainda ter conseguido acompanhar a natureza deste processo: à filosofia, é o momento de recorrer à figura única de Sócrates, cujas pretensões foram falar filosóficamente de homem para homem, e não para um estatuto acadêmico; À sociologia, de berço mais tardio, será preciso se renovar em absoluto para poder continuar sendo verdadeira - os índios, a política, o processo histórico, a situação prática dos meios de produção, a pedagogia das crianças e a instituição das leis penais parecem preocupações banais quando a natureza do problema é demonstrada na relação homem-mundo que estas mesmas preocupações construíram; à psicanálise, cabe reconhecer sua inefetividade prática e perceber que a sua necessidade na sociedade atual é antes um placebo que alimenta um vírus inquieto do que uma cura que corte o mal pela raiz, algo que também executa na prática o oposto do que propõe em teoria.

Fazer o que se a existência é antes ação do que reflexão, e se a reflexão só termina por gerar leis (sob os nomes cruéis que se querem isentas de responsabilidade: vontade, paixões, desejo, etc...) que, tal qual num corpus social, executam no corpo humano a ação diametralmente oposta à que se pretende...? Nunca Hegel teve tanta razão quanto ao que se pode observar no mundo real - o conceito, em sua efetividade, é exatamente sua antítese. Errou, porém, em achar que há uma ordem mesma que faça da antítese uma síntese que confirme o conceito em sua pureza - o que nos sobrou foi um mundo errático onde o indivíduo é incapaz de aprender com seus próprios erros.

Por isso, e só por isso, acredito que a arte sempre estará à frente.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O paradigma da catarse coletiva


Um interesse mais vívido pela investigação dos mecanismos da catarse coletiva dentro do cinema norte-americano atual deve ser, no mínimo, significativa de uma mudança que se opera em níveis de reflexão sobre a constituição e manutenção do país democrático, de Ford até hoje. O herói fordiano era um “homem em estado bruto”, pré-contratual, obscuro dentro dos parâmetros sociais, que, por um ato de violência, suprimiu o caos e instaurou a ordem. Pelas mãos deste “herói das trevas” é que o ato primordial de supressão da desordem se dá; por outro lado, foi necessário também uma mentira inaugural – a criação pela mídia de um “mito da ordem” encarnado na figura do homem culto do direito.

Esta estrutura se repete no Batman de Nolan (apoio-me em Zizek); o cavaleiro das trevas não é outro que não o herói fordiano, para além do bem e do mal, pária da sociedade, o acima-da-lei que suja as próprias mãos para suprimir um caos inerente à própria ordem social (toda ordem traz em si mesma a semente da desordem), encarnado pela imagem do Coringa. Ao final do filme, a tese fordiana se repete: a verdade é o próprio caos, e toda ordem social é baseada em (e mantida por) uma mentira – com muita lucidez, Nolan evidencia a criação do “mito da ordem” pelos jornais, mídias e canais de propagação de uma sociedade, travestido no advogado da lei, o cavaleiro branco que não precisa de máscaras. Ao Batman fica o encargo do herói por cuja máscara se esconde não só de seus inimigos, mas da própria sociedade – o fora-da-lei cujo único princípio é “não matar”. De cara, este princípio põe Nolan muito acima de nosso equivocadíssimo Tropa de Elite.

Somente dentro do contexto desta reflexão, que engloba uma quantidade incitável de filmes, é que uma obra de soluções estéticas e escolhas tão piegas como o Invictus, de Eastwood, adquire uma importância mais crucial. O caminho fácil seria descartar o filme como um suposto distúrbio dentro da carreira de um dos grandes diretores norte-americanos pós-70. Este ímpeto de descarte já diz muito da natureza do filme. Sua concomitância com Cameron, Mann e outros catárticos assumidos, e seu interesse por uma história obscura de Mandella, nos leva a crer que Invictus explora, em realidade, princípios artísticos que apresentam uma guinada específica na Hollywood dos anos 2000.

Trata-se, em primeira vista, de um deslocamento de figuras – ao contrário do papel midiático determinantemente político de Nolan (e Ford), o Mandella de Eastwood precisa recorrer a outra instância que, apesar das implicações olímpicas que o rugby invoca, denominaremos como espetaculares. O jornalista de Invictus é em si uma figura estéril, ridicularizada em sua prepotência e inefetividade, cuja emissão de voz não tem efeitos práticos nenhum. O político (Mandella) se encontra numa posição difícil – não pode ser a encarnação mítica da ordem e não pode executar sua principal tarefa: a de união sob uma mesma bandeira de dois grupos separados por ódio mútuo há 30 anos.

Ao invés de atitudes socio-políticas ou econômicas diretas, Mandella tem a percepção de que este desafio não pode ser vencido por atos super-estruturais, mas por uma espécie de denominador comum capaz de inspirar, mobilizar e agregar ambos as “raças”. Em certo sentido, é o mesmo dilema com o qual se depara Jake Sully em determinado momento de Avatar: como unir as tribos e incitá-las à guerra contra os humanos assim que todo diplomacia falha? No fundo, a questão de ambos parece ser encontrar uma ferramenta política de união, mobilização e, sobretudo, inspiração. Ao invés das mentiras que ocultam a desordem e inventam o mito da ordem, o que estes cineastas nos propõe é que é necessário um ato heróico e grandioso, sobre-humano (e por que não olímpico?) que inspire os povos e lhes resgate a capacidade de acreditar em sua própria potência. Enquanto Cameron trabalha com este princípio afundando Titanics, derrotando pássaros-deuses e desenvolvendo tecnologias de 3D inovadoras, em Invictus, Eastwood elimina qualquer pessoalidade, psicologismos e singularizações dos filmes e expõe com rigor o mecanismo político da arte catártica hollywoodiana.

O que de imediato parece um avanço deve primeiro ser visto sob a perspectiva do retrocesso a princípios estéticos de um sonambulismo benjaminiano, e princípios conceituais do cinema soviético das décadas de XX. Segundo Walter Benjamin, a potência inovadora do cinema enquanto meio era a de criar um sonambulismo intermitente da atenção do espectador, através de um inconsciente ótico que privilegia o vivido (tátil, sensível) ao focado (consciente, refletido). Assim, o meio cinematográfico teria seu valor máximo na sua capacidade de choque, de agitação das multidões com núcleos de atenção num mar de pulsões, em sua capacidade de gerar um êxtase que unifica e agita pelo que “vemos sem perceber”. De certo modo, não é esta experiência de êxtase que visaram os construtivistas soviéticos e suas gramáticas discursivas?

Não se trata de por em pé de igualdade a estrito senso o cinema soviético e o cinema hollywoodiano atual, pois a finalidade de suas execuções são bem distintas, mas de ver um germe comum de anti-psicologização (chega a ser risível as determinações psicológicas de Mandella e François) e construção do olímpico através da inspiração que a arte pode gerar – em certo sentido, explica o corte rápido dos enquadramentos preciosos de Mann, a necessidade que Cameron sente em inovar tecnologias quando seus filmes, em termos puramente intelectuais, parecem poder prescindir destas, e o por quê de um cineasta incisivo e duro como Eastwood se interessar quase de súbito pelo tema. Invictus é um filme a ser visto na sala de cinema, realizado para o povo em sua coletividade, como é o carnaval e o futebol carioca neste momento para nós: fenômeno de união e impulsão. O maior símbolo disto talvez seja os estranhos aplausos extasiados do público nos créditos finais da sessão que fui.

Isto também deve ser problematizado – sabemos que é a embriaguez das celebrações festivas e seu caráter sobre-humano que unem um povo sob uma determinada organização social, sob vivências e ritmos comuns. Mas qual é o valor da agregação mundial tão bem executada pelos norte-americanos se isto não vier acompanhado pela medida política (e artística) exatamente oposta, isto é, aquela cuja forma incentiva a reflexão individual em sua singularidade. O cinema, então, parece assumir o néscio papel de inspiração e criação do comum (vitais, como nos demonstra Avatar – trata-se de uma luta pela sobrevivência da espécie) sem reivindicar o polo oposto da existência – a singularização e desprendimento. À Ford, responderiamos: uma sociedade não precisa ser erigida sob uma mentira inaugural, mas também o pode ser por um ato humano genuinamente olímpico, inspirador. Esta resposta parece indicar um novo paradigma de alguma ordem. Mas continua sem efetivar a resposta definitiva sobre como seria possível erigir uma sociedade que não sufoque o indivíduo.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Matéria e Sentido: o cinema de Albert Serra


Longe de uma comparação estilística de qualquer natureza, é possível que encontremos no cinema de Albert Serra um vago sentido ético que o aproxime (por oposição) da literatura de Joyce – o que a palavra deve expressar de uma figura heróica-lendária é sua própria consciência em meio ao mundo; o que a imagem deve fazer com esta mesma figura é presentificá-la – de ambos os modos, o resultado é uma aproximação do leitor/espectador dos heróis fabulares, de sua intimidade (sem psicologias baratas. Sem psicologias. E ponto final) e sua existência presente. A aproximação é mais significativa se o Odisseus grego pode ser encontrado na Dublin em pleno século XX. Uma jornada de décadas é reduzida a um dia – o grandioso se torna diminuto ao mesmo tempo em que um sentimento ínfimo, uma percepção mínima, se faz presente em proporções dilatadas, expandidas ao titânico, dado ser esta a única verdadeira epifania possível. Com este (aparentemente) simples mecanismo, Joyce inaugura a escrita moderna. Ao enviesar este sistema (e estou convicto que, mesmo que formado em literatura, não percebe sua guinada), Serra executa o movimento oposto: através de pessoas comuns de sua cidade natal, faz filmes sobre personalidades históricamente icônicas na literatura universal. Ao contrário de Joyce, que no simples revela o magnânimo, Serra veste de magnânimo o que é simples. E, em momento algum nos sentimos enganados por sua pequena rasteira. Pois, no fundo, esta rasteira não é um ato de má-fé, mas uma inversão digna de admiração, que aponta um limite radical das potencialidades do cinema. Ele não é dado a fluxos de consciência in literis, à epifanias do homem comum (Bloom e Dédalus) que são analogias a grandes mitos históricos (Odisseu e Telemaco). O cinema é dado à captação de superfícies, ao conhecimento anti-histórico, pré-histórico, onde o Dom Quixote de Honra de Cavaleiro e os três rei-magos de O Canto dos Pássaros existem antes de serem o que se tornaram para a história: são homens comuns, em suas jornadas um tanto loucas e excêntricas, calcadas em uma fé absoluta de que atingirão o que desejam atingir. E, sobretudo, apenas pessoas vagando antes de se tornarem o que viriam a se tornar para a história universal. Isto implica em muitos resultados artísticos:


A História exige a palavra. O cinema, em sua especificidade mais radical, é absolutamente anti-histórico. Não exige sentidos – exige matérias. Mas Albert Serra não é um destes diretores que fará de seus filmes um repertório de matérias, afecções e pulsões brutas voltadas a sujeitos auto-centrados, largados à deriva e inefetivos em sua lida política com o mundo (sobre o tema ou algo por aí, vejam a bela crítica de Tatiana Monassa na contracampo). O sistema que o catalão monta é um pouco mais complexo quando, na realidade, o mundo não é seu ponto de partida. Serra pega emprestado os sentidos da história coletiva e universal, e procura a matéria destes sentidos – o que implica uma inversão filosófica contraditória – devemos primeiro acreditar no sentido já históricamente dado (e devemos mesmo?) às figuras dos três rei-magos ou de Dom Quixote, para então podermos extrair a matéria deste sentido.




No fundo, a premissa é ao mesmo tempo arrojada, ingênua e radical: é preciso ter fé como um ponto-de-partida (o que nos lembra Dreyer de imediato) – fé no misè-en-scene (é preciso crer que aquelas figuras jogadas à sua frente são, de fato, Dom Quixote e Sancho Pança), fé em uma universalidade, em uma ordem de qualquer natureza – Esta fé é tanto o ponto-de-partida da jornada de seus personagens (E não é à toa, e nem exageradamente que Serra se diga “o único diretor atual verdadeiramente cristão”). Fé de Dom Quixote que encontrará o divino; fé dos três rei-magos que encontrarão o menino Jesus. Esta jornada é estranha, vazia, e os personagens são como cegos tateando no escuro, mas com convicção de que encontrarão a luz. Uma breve inversão que opõe Serra a grande parte do cinema atual, que espera da imagem-afecção extraída da matéria um sentido próprio. Serra nos diz que a matéria só é efetivamente afetiva se lhe doamos um sentido de antemão. Não é à toa que o diretor catalão opte por estas figuras excêntricas, e configure sua jornada de modo mais excêntrico ainda – nos a tomamos pela memória coletiva-histórica, mas o que vemos é a sua pré-história – As tomamos por seu sentido e vemos sua matéria. E esta mesma matéria só adquire afecção se tomada neste sentido histórico emprestado, seu contraponto.

Por outro lado, a partir do momento em que esta convicção inaugural, este contrato de fé, é aceito, até a matéria mais simples começa a fazer sentido. Em O canto dos pássaros, na sequência após o encontro dos rei-magos com Jesus – encontro este que é pautado por uma trilha sonóra (que imediatamente nos remete à mais significativa referência, Bresson, para quem a música extra-diegética é necessariamente divina) – os três rei magos sentam em uma floresta. Um deles pega uma pedra e diz que a beleza às vezes nos atinge até nas coisas mais simples. O simples se torna belo se o sentido se concretiza.




No fundo, o universo não é inteiramente novo, mas a síntese destas referências, somadas a outras que por vezes aparentam estar lá, Straub, Rosselini e Akerman, por exemplo, e a elevação deste mecanismo a seu limite, são fatores que trazem uma força incomparável ao estilo de Serra. A opção do romance de Cervantes não é apenas um pretexto para evidenciar a fuga extrema da literalidade. É, também, uma re-atualização da figura de Dom Quixote; um interesse de, através da figura histórica, discursar e expor uma tensão.

O Quixote de Cervantes é uma figura que, graças aos romances de cavalheiros populares na idade média, tornou-se alucinado – as narrativas de grandes feitos heróicos lhe invadiram a alma ao ponto de não saber distinguir a história ficcional da história de acontecimentos fáticos. Em um posicionamento platônico, Cervantes condena os efeitos que esta espécie de literatura heróica tem sobre o povo de seus tempos. Segundo a polaridade que Ricoeur estabelece entre ficção e alucinação, Dom Quixote teria vertido inteiramente para o polo da alucinação, onde o inventado se confunde com a realidade histórica, e teria perdido o sentido primordial da ficção, o polo oposto. O Quixote de Albert Serra não é tanto um alucinado quanto um cristão que enxerga a força da matéria na palpabilidade das paisagens, em córregos, no entardecer, nas árvores e planícies. Esta força das paisagens só existe para Quixote, que tem fé – Não serve ao preguiçoso e descrente Pança. Após 30 minutos de filme onde o que temos é uma sucessão de poses e movimentos, Dom Quixote finalmente fala a Sancho Pança: “Sancho, acorde. Você está dormindo de novo. A única coisa que faz é dormir. Teve uma chuva, mas você não viu. Estava dormindo”. Confesso que perguntei a mim mesmo se houve a tal chuva. Voltei o filme e vi que não houve. Serra nos passa a perna novamente, questiona a fé que temos no que assistimos, e nos diz, sobretudo, que se não admitirmos um sentido (de qualquer natureza) que anteceda a matéria, não é apenas a nossa postura ética que é posta em cheque, mas a própria matéria se torna desinteressante, pois até a mínima imagem-afecção já é enfrentada pelos sentidos da palavra.

Então, voltemos a Joyce por um instante: os grandes sentimentos que a arte expressa também são possíveis ao homem comum, que destroça a verdade histórica à cada átimo de sua vida. Esta aproximação de arte e vida íntima que Joyce consegue executar com brilhantismo é também onde Serra se torna altivo, frio e pretensioso – se Quixote é Quixote por princípio, por seu conteúdo histórico, já temos com ele uma relação de distância que a câmera, interessada na matéria desta existência histórica, não consegue superar. Neste sentido, acho-o demasiadamente respeitoso com a história – seu tom é sempre demais classicista, até em situações aparentemente banais, e o escape desta exaltação é o espectador, que é demasiadamente primitivo para apreciá-lo. Por outro lado, se não aceitamos que Quixote é Quixote, é porque não temos fé, e então sua jornada pelas paisagens perde absolutamente o sentido. Mas estes ainda são os primeiros filmes de Serra, e já vem com um vigor único, de uma terra alienígena qualquer. O que mais me anima em seu cinema é a convicção de que sua grande obra-prima ainda está por vir – no fundo, ainda aguardo o dia em que possa vê-lo filmar Bloom e Dédalos em suas caminhadas por Dublin.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

As Casuarinas


Fugirei praquela sombra calma
Q´à tardinha em teus braços nasce
Distrair-me da alvura do Sol...

As sonecas após os passeios
Nas areias que engolfam os dedos
a sorver, dédalus mortus, pensamentos santos,
nas ondas sinceras do quebra-mar...

Cavar um buraco, enterrar promessas.
Ver os saltos dos botos no amanhecer
O sobrevôo dos pássaros cinzas
A expedição dos siris pelos nossos pés
O bréjo quente cor-de-petróleo
Nossa pele adocicada de descanso,
O reflexo de nossas mãos
submersas, intactas, intácteis.

O tempo da pesca que inexiste
nos redime deste sol que engana
a geografia dos poetas,
a biologia dos que remam,
amenizados e enternecidos,
contra o furor da ventania.

Estranho ter ido tão longe, tão fundo,
para retornar, pacificado, ao intervalo
da superfície; abraçar teu breu
na visão desta aurora rubra,
no mar que inda toca uma lua
argenta a brilhar no charco.

A doença molusca que temos,
Pandemônio de negros caramujos,
esta brasa que nos incendeia,
cuidá-la com a calma
do gesto interiorano.

Voltarei, prometo! algum dia...
E não esquecerei que
Todo anjo é Terrível.
Mas, de agora em diante,
ver erigir no lago a última lei
antes que o Tempo volte a existir:
Todo mergulho será tranquilo.