quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Invertendo os papéis



Foto tirada pelo JP.

"Ao gritar ação, os atores ficavam parados e a equipe se mexia." (comentário do Fábio ao me enviar a foto).

Traz grandes saudades e lembranças fantásticas...

domingo, 20 de setembro de 2009

Guarda Noturno



Seguro a madrugada, perplexo de calma, e assisto
de soslaio, a reconstituição da igreja. Teu corpo,
que foge em cada esquina ainda convoca
os morcegos da antiga construção.

Por trás das lentes, vi que choravas,
Por dentro em silêncio, como se tudo
fosse um segredo ainda maior.

Sentes ao lado e veja...! Como os três homens
esculpem os anjos com espátulas, para que
o Sol do amanhã não nos peça lágrimas,
e nem tristes orações.

... pois para a noite voltaremos juntos,
caso a manhã não nos traga
as mais serenas explicações.

Espanto e Curiosidade


"A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, pular para uma outra novidade. Esse ver não cuida em apreender nem em ser e estar na verdade, através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. É por isso que a curiosidade se caracteriza, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. (...) A curiosidade, a que nada se esquiva, o falatório, que tudo compreende, dão à pre-sença, que assim existe, a garantia de 'uma vida cheia de vida', pretensamente autêntica." (Extraído de Ser e Tempo)

Relendo o Ser e Tempo, me impressiona sobretudo a precisão com que Heidegger, o mais “grego” dos filósofos contemporâneos, coloca problemas sérios de nossos tempos sempre de modo ontológico, isto é, remetendo a um comportamento da presença. Duas disposições fundamentais: a curiosidade e o espanto. O primeiro, fundado num modo de ser impróprio, porém constitutivo; o segundo, o verdadeiro berço do filosofar. A curiosidade é caracterizada por impermanência e dispersão; uma espécie de “revanche” da vivência cotidiana, dominada pela impropriedade do público no qual nos perdermos na maior parte das vezes; revanche que ocorre quando encontramos uma abertura ao mundo circundante, isto é, quando abrimos uma brecha para escapar deste modo-de-ser comum e decaído, perdido na publicidade (isto é, assumindo comportamentos ditados não por sua própria abertura ao ser, mas por uma espécie de “regime do impessoal”). Ao nos depararmos com “o novo”, caracterizado por esta ruptura do mundo circundante e pelo encontro com um outro possível modo-de-ser no mundo, a curiosidade age como uma espécie de placebo, impedindo o espanto. A curiosidade nos segura no mesmo modo de ser tratando “o novo” como um “já compreendido”; o novo é incapaz de nos lançar em uma abertura ao ser, pois enxergamos o novo como curiosidade, como um “já compreendido”. Buscar o novo, com esta disposição, é pura catarse sem nenhuma abertura efetiva ao próprio ser: “Em sua ambiguidade, o falatório e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público.”

O espanto, por outro lado, nasce do ócio, do demorar-se junto ao novo, de uma abertura. Esta abertura é uma espécie de exercício, e não um modo-de-ser imediato (Heidegger, diferente da maioria, nunca privilegiou o “imediato” apenas por ser o acesso mais rápido aos entes; pelo contrário, Heidegger compreende que sempre, ainda que sem compreensão disto, estamos lançados em um mundo, comportando-se e relacionando-se com um ente de maneira já mediada por este comportamento. Não a toa, algumas vezes, Heidegger indica que um dos problemas fundamentais da filosofia do idealismo alemão, culminando em Hegel, é identificar na “intuição pura” o modo adequado de acesso ao ser. Para Heidegger, de “imediato”, o ser encontra-se oculto por nosso próprio comportamento em relação e ele). No espanto, somos lançados ao Ser do ente, e ao mesmo tempo, lançados a nós mesmos, pois nós estamos sempre em relação com o Ser.

Tratar o mundo como curiosidade é fugir da angústia, a disposição privilegiada de ruptura do mundo circundante, de compreensão que o mundo se fundamenta em um abismo, em um “nada”. Através da angústia é que podemos encontrar nosso poder-ser mais próprio. Hoje em dia, foge-se da angústia com tanto temor que o novo termina por perder sua efetividade – não nos aproximamos dele com espanto, mas com mera curiosidade.

Não vou me estender numa das reflexões mais ricas já elaborados. Sintetizá-la sem erros é uma tarefa de Hércules. Prefiro ficar com as citações:

"De início, a presença é impessoal e, na maior parte das vezes, assim permanence. Quando a presença descobre o mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de “mundo” e esta abertura da pre-sença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a pre-sença se tranca contra si mesmo."

Termino citando uma imagem de Kieslowski, um dos cineastas que fez deste problema um de seus tópicos, em A liberdade é azul – os homens a saltar de bungee jump, uma imagem aparentemente desconexa, mas que cái como uma luva em um filme onde uma mulher tem de lidar com a morte de entes queridos. O bungee jump surge como um salto que não se efetiva – visa-se a tensão, a “excitação e inquietação”, porém sem um salto efetivo. A corda amarrada nos pés garante que irá retornar. A morte, por outro lado, não permite que se fique sempre o mesmo, não tem esta espécie de retorno possível.


segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Espetáculo do Sacrifício



O que julgo haver de melhor em Ondas do Destino é a exposição esquemática de um cinema que me causa repulsa. Assisti poucos filmes de Lars Von Trier, o que naturalmente desqualifica uma visão geral da obra, e todos que assisti foram experiências sádicas o suficiente para não desejar retornar. O mérito de Ondas do Destino seria me explicar exatamente por quê não desejo retornar, isto é, por quê se criou em mim o preconceito. Um preconceito, porém que se reafirma a cada filme, e que se funda em alguns princípios problemáticos do autor. Estes que desejo comentar.


O princípio do filme planta a semente, e ilustra o desejo fundamental de Von Trier: pôr os sinos em uma igreja sem sinos. O que isto significa? Retornar, no sentido de re-encontrar, o princípio originário de uma instauração de um mundo, a operação fundadora de uma instituição de um modo de viver, uma re-atualização do sentido primeiro de uma sacralização do mundo. Frente a uma instituição católica incapaz de reatualizar seus princípios, que passa a funcionar mecânicamente com leis imutáveis e antiquadas, o que se busca é restituir seu envio histórico, em outras palavras, recolocar em vivência o sentido do “bem”. A premissa é interessante, e não a toa os primeiros momentos do filme tem alguma força.

Mas toda a força se esvai quando o caminho que Lars Von Trier trilha, no sentido deste re-encontro de um modo de viver com seus próprios princípios, se desenha esquemático e, sobretudo, absurdamente irreal. A exaltação de uma dramaticidade que não se contêm, registrada por uma câmera na mão próxima, vizinha, não é o suficiente para romper esta barreira que o diretor erige entre o aparato e seu tema. Pois a muralha é antes conceitual do que estética: através do personagem-central de Bess, Von Trier expõe a sua figura-ideal de ator, o obediente, que põe seu corpo à mercie das intenções mal-esclarecidas de outrem; a matéria anula seu vigor, isto é, se sacrifica em nome da idéia – em outras palavras, não há o combate tradicional entre o sensível e o inteligível. Para que o cinema de Von Trier aconteça, é necessário que o sensível cometa seu “sacrifício”, o termo chave de suas concepções.

O que resulta deste sacrifício? Um artificialismo extremo. O emocionalismo vira pura catarse e inibe um vigor qualquer que pudesse emergir das situações. A narrativa se torna óbvia e repetitiva – um quadro de desgraças de um sadismo incômodo. O tempo dilatado não visa projetar o espectador no paradoxo da imagem, nem visa apresentar-lhe uma sensibilidade única no mundo, mas apenas segurá-lo pelo pescoço em situações que já se apresentam unívocas, como becos sem saída – visa-se um êxtase que se encerra em si mesmo.


O sacrifício é identificado como a instância criadora, instauradora de uma verdade sacra (Mircea Eliade). O problema da proposição de Lars Von Trier não é, propriamente, o princípio do sacrifício. Tal qual Bess diz de Deus, o “sacrifício” é apenas uma palavra dentre tantas outras, cujo mecanismo deve ser mais bem esclarecido, e o sacrifício cristão que Von Trier identifica como executor de um rasgão no mundo, como “por os sinos na igreja”, é apenas um modo de sacrifício tão vago quanto o “Deus” de seus personagens protestantes. O sacrifício é um dos meios de despertar o homem para o “Bem”, de fato. Mas o processo de sacrifício que Lars Von Trier instaura, exatamente por esta fabulação alucinada que exige de sua matéria, é esquemático, metódico, mentiroso e, acima de tudo, uma exaltação irrefletida do sofrimento. E que sentido tem neste sofrimento que eleva ao milagre, se o próprio milagre ecoa como uma farsa barata em meio a tantas outras, neste vale-tudo que deixa de visar o milagre e passa a visar o sadismo?

O sadismo hiperbólico se apresenta como o caminho, por excelência, do sacrifício que Von Trier pede para o acontecimento do milagre. Este sadismo é justificado pelo amor. Bess ama Jan, e anula a si mesmo, sacrifica a si mesmo, pondo-se num processo de sofrimento absurdo em nome deste amor. É belo que o amor transforme as pessoas, tal qual Bess, de santa vira puta. Não é belo que isto ocorra graças aos pedidos de Jan (ou Deus, a esta altura do filme, que pede o sofrimento de Bess como “redenção”. O ato profano não é de fato profano, mas uma mediação sádica à iluminação). Impossível concordar com esta espécie de amor que sofre desmedidamente por ausência, que exige a presença constante do outro e transforma o outro em um objeto de obsessão. Um amor desta natureza já não é puro. É um amor que decai em histeria e psicose (Andre Comte-Sponville nos lembra que a virtude é um pico entre dois abismos), e nada soa mais irrisório do que chamá-lo de “bondade”, tal qual o faz o personagem do médico perante o tribunal. Em síntese, o amor segundo Von Trier é sadismo, puro sofrimento, e quando isto ocorre, o sentido primário do amor é esquecido. O sadismo termina santificado (neste ponto, o amor cristão é condenável).


Observar uma tortura que, há tempos, já deixou de ser amor, não é algo que me apeteça, sobretudo quando o que teremos no final é um milagre mecânico. Esta tortura Lars Von Trier também impõe a seu espectador, com a promessa de que, no final, ela será necessária para um milagre genuíno. Este milagre termina por vir frágil e irrisório. Dreyer, o coterrâneo referencial do milagre, não exige sofrimento, nem sacrifício, apenas fé – seu minimalismo é uma decorrência natural de visão de mundo, e não um dogma arbitrário: fator que torna seus personagens muito mais críveis e o milagre muito mais pujante e verdadeiro. Tarkovski recorre ao sacrifício, mas o sacrifício não é doloroso – é decorrência do milagre (Alexander, de O Sacrifício), ou uma verdadeira necessidade quando se torna a única forma possivel de comunicação entre os homens (Domenico, de Nostalgia). Nunca um processo dolorífico de amor transviado em psicose. O silêncio de Deus é mais belo do que a esquisofrenia de Bess. E a igreja sem sinos tão rígida quanto forçar o gôngo goela abaixo.

E o maior perigo desta espécie de visão do amor é seu desdobramento em Dogville, quando deixa de acreditar em si mesmo e passa a verter a seu polo radical oposto, o fascismo. O perigo é enorme, de fato. Se fosse Platão, baniria Lars Von Trier de minha república. Mas não vou condená-lo absolutamente. O filme começa bem, mas desanda. Se não houvesse milagre algum, e os sinos jamais ecoassem, Lars Von Trier teria feito um belo filme.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Últimos dias




Alguns frames da razão pela qual nestas últimas semanas não tenho postado direito (Estas vêm de um DVD de baixa qualidade. Assim que tiver, trocarei por imagens de melhor qualidade). Dificuldades de me organizar para escrever com este filme em processo de finalização. Também me preparo para outras coisas: um projeto de mestrado, um artigo a ser escrito para um livro, etc... Em breve, vou postar um texto que estou escrevendo sobre o catalão Albert Serra. E vou tentar, na medida do possível, continuar escrevendo para cá constantemente.

Estas imagens são frutos da obsessão que me envolveu desde o começo do ano. O processo já está no fim, e isto é tão estranho. Restou o vazio enorme de sua completude. Acho que estou em processo de luto, para usar o termo freudiano. Na realidade, acho que estou sempre em processo de luto, sempre lutando em vão contra o princípio da realidade e sendo continuamente derrotado. Talvez isto seja um pouco triste. Mas a sublimação é bela e deixa seus frutos, e talvez vale a pena o trabalho de luto póstumo, por vezes necessário. Tento não decair em melancolia e auto-anulação. E sempre me pergunto em que medida todo este processo pode ser diferente. Pode ser diferente? Isto, também, nunca sei. A verdade é que, ultimamente, tenho tentado lembrar do que eu sei, e quando o tento, tenho a impressão de que sei muito pouco ou quase nada. E não se trata de melancolia, nem insegurança. É outra coisa que não sei denominar.

Tentei assistir meu próprio filme com algum envolvimento, e senti que ele tem uma força enorme que o move, porém muitas arestas ainda a aparar. Fiquei comovido na cena do menininho na estação. Chorei, com sinceridade, na cena do cinema. Odiei cada erro embaraçoso meu que reconheci. Tive orgulho da força que as imagens, situações e personagens tem, e da coesão que existe no todo. Tive medo da exigência que faço (ou confiança que tenho) no espectador. Exige muita atenção, entrega, mergulho. Espero que os frutos estejam à altura desta exigência, e não seja tudo mero artifício. Compreendi o filme de outro modo. Talvez do mesmo modo, porém em outros termos. Compreendi melhor os personagens, as situações e o mecanismo das opções artísticas. Lembrei que ver filmes é sempre bom. Entendi, sobretudo, onde quero chegar com tudo aquilo. E me surpreendi muito.

Para não fazer uma postagem inócua, deixo um trecho de Ricoeur que me lembrou o personagem central deste filme. O trecho foi extraído de um livro chamado A memória, a história, o esquecimento, uma das poucas leituras que consegui manter nestas últimas semanas tão ocupadas:

"O cerne do problema é a mobilização da memória a serviço da busca, da demanda, da reivindicação de identidade. Entre as derivações que dele resultam, conhecemos alguns sintomas inquietantes: excesso de memória, em tal região do mundo, portanto, abuso de memória – insuficiência de memória, em outra, portanto, abuso de esquecimento. Pois bem, é na problemática da identidade que se deve agora buscar a causa da fragilidade da memória assim manipulada."


Até a próxima.