domingo, 20 de setembro de 2009

Espanto e Curiosidade


"A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, pular para uma outra novidade. Esse ver não cuida em apreender nem em ser e estar na verdade, através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. É por isso que a curiosidade se caracteriza, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. (...) A curiosidade, a que nada se esquiva, o falatório, que tudo compreende, dão à pre-sença, que assim existe, a garantia de 'uma vida cheia de vida', pretensamente autêntica." (Extraído de Ser e Tempo)

Relendo o Ser e Tempo, me impressiona sobretudo a precisão com que Heidegger, o mais “grego” dos filósofos contemporâneos, coloca problemas sérios de nossos tempos sempre de modo ontológico, isto é, remetendo a um comportamento da presença. Duas disposições fundamentais: a curiosidade e o espanto. O primeiro, fundado num modo de ser impróprio, porém constitutivo; o segundo, o verdadeiro berço do filosofar. A curiosidade é caracterizada por impermanência e dispersão; uma espécie de “revanche” da vivência cotidiana, dominada pela impropriedade do público no qual nos perdermos na maior parte das vezes; revanche que ocorre quando encontramos uma abertura ao mundo circundante, isto é, quando abrimos uma brecha para escapar deste modo-de-ser comum e decaído, perdido na publicidade (isto é, assumindo comportamentos ditados não por sua própria abertura ao ser, mas por uma espécie de “regime do impessoal”). Ao nos depararmos com “o novo”, caracterizado por esta ruptura do mundo circundante e pelo encontro com um outro possível modo-de-ser no mundo, a curiosidade age como uma espécie de placebo, impedindo o espanto. A curiosidade nos segura no mesmo modo de ser tratando “o novo” como um “já compreendido”; o novo é incapaz de nos lançar em uma abertura ao ser, pois enxergamos o novo como curiosidade, como um “já compreendido”. Buscar o novo, com esta disposição, é pura catarse sem nenhuma abertura efetiva ao próprio ser: “Em sua ambiguidade, o falatório e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público.”

O espanto, por outro lado, nasce do ócio, do demorar-se junto ao novo, de uma abertura. Esta abertura é uma espécie de exercício, e não um modo-de-ser imediato (Heidegger, diferente da maioria, nunca privilegiou o “imediato” apenas por ser o acesso mais rápido aos entes; pelo contrário, Heidegger compreende que sempre, ainda que sem compreensão disto, estamos lançados em um mundo, comportando-se e relacionando-se com um ente de maneira já mediada por este comportamento. Não a toa, algumas vezes, Heidegger indica que um dos problemas fundamentais da filosofia do idealismo alemão, culminando em Hegel, é identificar na “intuição pura” o modo adequado de acesso ao ser. Para Heidegger, de “imediato”, o ser encontra-se oculto por nosso próprio comportamento em relação e ele). No espanto, somos lançados ao Ser do ente, e ao mesmo tempo, lançados a nós mesmos, pois nós estamos sempre em relação com o Ser.

Tratar o mundo como curiosidade é fugir da angústia, a disposição privilegiada de ruptura do mundo circundante, de compreensão que o mundo se fundamenta em um abismo, em um “nada”. Através da angústia é que podemos encontrar nosso poder-ser mais próprio. Hoje em dia, foge-se da angústia com tanto temor que o novo termina por perder sua efetividade – não nos aproximamos dele com espanto, mas com mera curiosidade.

Não vou me estender numa das reflexões mais ricas já elaborados. Sintetizá-la sem erros é uma tarefa de Hércules. Prefiro ficar com as citações:

"De início, a presença é impessoal e, na maior parte das vezes, assim permanence. Quando a presença descobre o mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de “mundo” e esta abertura da pre-sença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a pre-sença se tranca contra si mesmo."

Termino citando uma imagem de Kieslowski, um dos cineastas que fez deste problema um de seus tópicos, em A liberdade é azul – os homens a saltar de bungee jump, uma imagem aparentemente desconexa, mas que cái como uma luva em um filme onde uma mulher tem de lidar com a morte de entes queridos. O bungee jump surge como um salto que não se efetiva – visa-se a tensão, a “excitação e inquietação”, porém sem um salto efetivo. A corda amarrada nos pés garante que irá retornar. A morte, por outro lado, não permite que se fique sempre o mesmo, não tem esta espécie de retorno possível.


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