quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O paradigma da catarse coletiva


Um interesse mais vívido pela investigação dos mecanismos da catarse coletiva dentro do cinema norte-americano atual deve ser, no mínimo, significativa de uma mudança que se opera em níveis de reflexão sobre a constituição e manutenção do país democrático, de Ford até hoje. O herói fordiano era um “homem em estado bruto”, pré-contratual, obscuro dentro dos parâmetros sociais, que, por um ato de violência, suprimiu o caos e instaurou a ordem. Pelas mãos deste “herói das trevas” é que o ato primordial de supressão da desordem se dá; por outro lado, foi necessário também uma mentira inaugural – a criação pela mídia de um “mito da ordem” encarnado na figura do homem culto do direito.

Esta estrutura se repete no Batman de Nolan (apoio-me em Zizek); o cavaleiro das trevas não é outro que não o herói fordiano, para além do bem e do mal, pária da sociedade, o acima-da-lei que suja as próprias mãos para suprimir um caos inerente à própria ordem social (toda ordem traz em si mesma a semente da desordem), encarnado pela imagem do Coringa. Ao final do filme, a tese fordiana se repete: a verdade é o próprio caos, e toda ordem social é baseada em (e mantida por) uma mentira – com muita lucidez, Nolan evidencia a criação do “mito da ordem” pelos jornais, mídias e canais de propagação de uma sociedade, travestido no advogado da lei, o cavaleiro branco que não precisa de máscaras. Ao Batman fica o encargo do herói por cuja máscara se esconde não só de seus inimigos, mas da própria sociedade – o fora-da-lei cujo único princípio é “não matar”. De cara, este princípio põe Nolan muito acima de nosso equivocadíssimo Tropa de Elite.

Somente dentro do contexto desta reflexão, que engloba uma quantidade incitável de filmes, é que uma obra de soluções estéticas e escolhas tão piegas como o Invictus, de Eastwood, adquire uma importância mais crucial. O caminho fácil seria descartar o filme como um suposto distúrbio dentro da carreira de um dos grandes diretores norte-americanos pós-70. Este ímpeto de descarte já diz muito da natureza do filme. Sua concomitância com Cameron, Mann e outros catárticos assumidos, e seu interesse por uma história obscura de Mandella, nos leva a crer que Invictus explora, em realidade, princípios artísticos que apresentam uma guinada específica na Hollywood dos anos 2000.

Trata-se, em primeira vista, de um deslocamento de figuras – ao contrário do papel midiático determinantemente político de Nolan (e Ford), o Mandella de Eastwood precisa recorrer a outra instância que, apesar das implicações olímpicas que o rugby invoca, denominaremos como espetaculares. O jornalista de Invictus é em si uma figura estéril, ridicularizada em sua prepotência e inefetividade, cuja emissão de voz não tem efeitos práticos nenhum. O político (Mandella) se encontra numa posição difícil – não pode ser a encarnação mítica da ordem e não pode executar sua principal tarefa: a de união sob uma mesma bandeira de dois grupos separados por ódio mútuo há 30 anos.

Ao invés de atitudes socio-políticas ou econômicas diretas, Mandella tem a percepção de que este desafio não pode ser vencido por atos super-estruturais, mas por uma espécie de denominador comum capaz de inspirar, mobilizar e agregar ambos as “raças”. Em certo sentido, é o mesmo dilema com o qual se depara Jake Sully em determinado momento de Avatar: como unir as tribos e incitá-las à guerra contra os humanos assim que todo diplomacia falha? No fundo, a questão de ambos parece ser encontrar uma ferramenta política de união, mobilização e, sobretudo, inspiração. Ao invés das mentiras que ocultam a desordem e inventam o mito da ordem, o que estes cineastas nos propõe é que é necessário um ato heróico e grandioso, sobre-humano (e por que não olímpico?) que inspire os povos e lhes resgate a capacidade de acreditar em sua própria potência. Enquanto Cameron trabalha com este princípio afundando Titanics, derrotando pássaros-deuses e desenvolvendo tecnologias de 3D inovadoras, em Invictus, Eastwood elimina qualquer pessoalidade, psicologismos e singularizações dos filmes e expõe com rigor o mecanismo político da arte catártica hollywoodiana.

O que de imediato parece um avanço deve primeiro ser visto sob a perspectiva do retrocesso a princípios estéticos de um sonambulismo benjaminiano, e princípios conceituais do cinema soviético das décadas de XX. Segundo Walter Benjamin, a potência inovadora do cinema enquanto meio era a de criar um sonambulismo intermitente da atenção do espectador, através de um inconsciente ótico que privilegia o vivido (tátil, sensível) ao focado (consciente, refletido). Assim, o meio cinematográfico teria seu valor máximo na sua capacidade de choque, de agitação das multidões com núcleos de atenção num mar de pulsões, em sua capacidade de gerar um êxtase que unifica e agita pelo que “vemos sem perceber”. De certo modo, não é esta experiência de êxtase que visaram os construtivistas soviéticos e suas gramáticas discursivas?

Não se trata de por em pé de igualdade a estrito senso o cinema soviético e o cinema hollywoodiano atual, pois a finalidade de suas execuções são bem distintas, mas de ver um germe comum de anti-psicologização (chega a ser risível as determinações psicológicas de Mandella e François) e construção do olímpico através da inspiração que a arte pode gerar – em certo sentido, explica o corte rápido dos enquadramentos preciosos de Mann, a necessidade que Cameron sente em inovar tecnologias quando seus filmes, em termos puramente intelectuais, parecem poder prescindir destas, e o por quê de um cineasta incisivo e duro como Eastwood se interessar quase de súbito pelo tema. Invictus é um filme a ser visto na sala de cinema, realizado para o povo em sua coletividade, como é o carnaval e o futebol carioca neste momento para nós: fenômeno de união e impulsão. O maior símbolo disto talvez seja os estranhos aplausos extasiados do público nos créditos finais da sessão que fui.

Isto também deve ser problematizado – sabemos que é a embriaguez das celebrações festivas e seu caráter sobre-humano que unem um povo sob uma determinada organização social, sob vivências e ritmos comuns. Mas qual é o valor da agregação mundial tão bem executada pelos norte-americanos se isto não vier acompanhado pela medida política (e artística) exatamente oposta, isto é, aquela cuja forma incentiva a reflexão individual em sua singularidade. O cinema, então, parece assumir o néscio papel de inspiração e criação do comum (vitais, como nos demonstra Avatar – trata-se de uma luta pela sobrevivência da espécie) sem reivindicar o polo oposto da existência – a singularização e desprendimento. À Ford, responderiamos: uma sociedade não precisa ser erigida sob uma mentira inaugural, mas também o pode ser por um ato humano genuinamente olímpico, inspirador. Esta resposta parece indicar um novo paradigma de alguma ordem. Mas continua sem efetivar a resposta definitiva sobre como seria possível erigir uma sociedade que não sufoque o indivíduo.