segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Espetáculo do Sacrifício



O que julgo haver de melhor em Ondas do Destino é a exposição esquemática de um cinema que me causa repulsa. Assisti poucos filmes de Lars Von Trier, o que naturalmente desqualifica uma visão geral da obra, e todos que assisti foram experiências sádicas o suficiente para não desejar retornar. O mérito de Ondas do Destino seria me explicar exatamente por quê não desejo retornar, isto é, por quê se criou em mim o preconceito. Um preconceito, porém que se reafirma a cada filme, e que se funda em alguns princípios problemáticos do autor. Estes que desejo comentar.


O princípio do filme planta a semente, e ilustra o desejo fundamental de Von Trier: pôr os sinos em uma igreja sem sinos. O que isto significa? Retornar, no sentido de re-encontrar, o princípio originário de uma instauração de um mundo, a operação fundadora de uma instituição de um modo de viver, uma re-atualização do sentido primeiro de uma sacralização do mundo. Frente a uma instituição católica incapaz de reatualizar seus princípios, que passa a funcionar mecânicamente com leis imutáveis e antiquadas, o que se busca é restituir seu envio histórico, em outras palavras, recolocar em vivência o sentido do “bem”. A premissa é interessante, e não a toa os primeiros momentos do filme tem alguma força.

Mas toda a força se esvai quando o caminho que Lars Von Trier trilha, no sentido deste re-encontro de um modo de viver com seus próprios princípios, se desenha esquemático e, sobretudo, absurdamente irreal. A exaltação de uma dramaticidade que não se contêm, registrada por uma câmera na mão próxima, vizinha, não é o suficiente para romper esta barreira que o diretor erige entre o aparato e seu tema. Pois a muralha é antes conceitual do que estética: através do personagem-central de Bess, Von Trier expõe a sua figura-ideal de ator, o obediente, que põe seu corpo à mercie das intenções mal-esclarecidas de outrem; a matéria anula seu vigor, isto é, se sacrifica em nome da idéia – em outras palavras, não há o combate tradicional entre o sensível e o inteligível. Para que o cinema de Von Trier aconteça, é necessário que o sensível cometa seu “sacrifício”, o termo chave de suas concepções.

O que resulta deste sacrifício? Um artificialismo extremo. O emocionalismo vira pura catarse e inibe um vigor qualquer que pudesse emergir das situações. A narrativa se torna óbvia e repetitiva – um quadro de desgraças de um sadismo incômodo. O tempo dilatado não visa projetar o espectador no paradoxo da imagem, nem visa apresentar-lhe uma sensibilidade única no mundo, mas apenas segurá-lo pelo pescoço em situações que já se apresentam unívocas, como becos sem saída – visa-se um êxtase que se encerra em si mesmo.


O sacrifício é identificado como a instância criadora, instauradora de uma verdade sacra (Mircea Eliade). O problema da proposição de Lars Von Trier não é, propriamente, o princípio do sacrifício. Tal qual Bess diz de Deus, o “sacrifício” é apenas uma palavra dentre tantas outras, cujo mecanismo deve ser mais bem esclarecido, e o sacrifício cristão que Von Trier identifica como executor de um rasgão no mundo, como “por os sinos na igreja”, é apenas um modo de sacrifício tão vago quanto o “Deus” de seus personagens protestantes. O sacrifício é um dos meios de despertar o homem para o “Bem”, de fato. Mas o processo de sacrifício que Lars Von Trier instaura, exatamente por esta fabulação alucinada que exige de sua matéria, é esquemático, metódico, mentiroso e, acima de tudo, uma exaltação irrefletida do sofrimento. E que sentido tem neste sofrimento que eleva ao milagre, se o próprio milagre ecoa como uma farsa barata em meio a tantas outras, neste vale-tudo que deixa de visar o milagre e passa a visar o sadismo?

O sadismo hiperbólico se apresenta como o caminho, por excelência, do sacrifício que Von Trier pede para o acontecimento do milagre. Este sadismo é justificado pelo amor. Bess ama Jan, e anula a si mesmo, sacrifica a si mesmo, pondo-se num processo de sofrimento absurdo em nome deste amor. É belo que o amor transforme as pessoas, tal qual Bess, de santa vira puta. Não é belo que isto ocorra graças aos pedidos de Jan (ou Deus, a esta altura do filme, que pede o sofrimento de Bess como “redenção”. O ato profano não é de fato profano, mas uma mediação sádica à iluminação). Impossível concordar com esta espécie de amor que sofre desmedidamente por ausência, que exige a presença constante do outro e transforma o outro em um objeto de obsessão. Um amor desta natureza já não é puro. É um amor que decai em histeria e psicose (Andre Comte-Sponville nos lembra que a virtude é um pico entre dois abismos), e nada soa mais irrisório do que chamá-lo de “bondade”, tal qual o faz o personagem do médico perante o tribunal. Em síntese, o amor segundo Von Trier é sadismo, puro sofrimento, e quando isto ocorre, o sentido primário do amor é esquecido. O sadismo termina santificado (neste ponto, o amor cristão é condenável).


Observar uma tortura que, há tempos, já deixou de ser amor, não é algo que me apeteça, sobretudo quando o que teremos no final é um milagre mecânico. Esta tortura Lars Von Trier também impõe a seu espectador, com a promessa de que, no final, ela será necessária para um milagre genuíno. Este milagre termina por vir frágil e irrisório. Dreyer, o coterrâneo referencial do milagre, não exige sofrimento, nem sacrifício, apenas fé – seu minimalismo é uma decorrência natural de visão de mundo, e não um dogma arbitrário: fator que torna seus personagens muito mais críveis e o milagre muito mais pujante e verdadeiro. Tarkovski recorre ao sacrifício, mas o sacrifício não é doloroso – é decorrência do milagre (Alexander, de O Sacrifício), ou uma verdadeira necessidade quando se torna a única forma possivel de comunicação entre os homens (Domenico, de Nostalgia). Nunca um processo dolorífico de amor transviado em psicose. O silêncio de Deus é mais belo do que a esquisofrenia de Bess. E a igreja sem sinos tão rígida quanto forçar o gôngo goela abaixo.

E o maior perigo desta espécie de visão do amor é seu desdobramento em Dogville, quando deixa de acreditar em si mesmo e passa a verter a seu polo radical oposto, o fascismo. O perigo é enorme, de fato. Se fosse Platão, baniria Lars Von Trier de minha república. Mas não vou condená-lo absolutamente. O filme começa bem, mas desanda. Se não houvesse milagre algum, e os sinos jamais ecoassem, Lars Von Trier teria feito um belo filme.


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