terça-feira, 25 de agosto de 2009

Estudo #3: O Cisne


Recolhes tua mão no princípio da chuva.
Como ontem, teus olhos se furtam do amanhã.
Com que medo inexorável de nos perdermos
persistimos em existir em limites cinzentos.
E donde pode provir alguma coragem?
... se já não podemos mais sonhar.
Restou-nos não mais que um solo remexido.
Uma terra sem promessas, cujos frutos
nascem sempre os mesmos, à cada estação,
à cada madrugada os lastros suportamos.
Estamos prontos, para sempre, a permanecer
na eternidade do presente; no esquecimento,
escravos do hábito de pintar esmaecido
os pigmentos mais vivos daquela catedral.
E a voz assimétrica do canto nos pede
um mergulho incomedido ao amanhã. Mas como?
Como o fariamos sem matar ou morrer?

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Estudo #2: A permanência de um sorriso


A permanência de um sorriso? É o que nos resta
quando somos menos que ontem. Quando as cinzas
brotam céleres dos ventos, e as brasas aquiescem
outra vez nos pinherais. Viajamos por ladrilhos
costeiros, e vivemos o afã de nos jogar
na extensa direção do calmo mar
em que se encerra o bruto estado da existência.
Mas um corpo já não é mais que uma criança,
e os olhos já são menos capazes
de distinguir os borrões obnubliados
que erigem da chuva de cada entardecer.
Nas sarjetas da estrada, como infantos perdidos,
sentamos, e ainda assim, não se explica o por quê,
q'entre os dentes de mel insiste
a permanência de um sorriso
tão breve e jovial.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Estudo #1: Estrela do Norte


Tranquei no porão uma quimera de estimação
E inda ouço teus gritos enquanto o naufrágio
Intumesce de febre as náus.
Enxarcando de peixe o chão.
Violando a estabilidade tênue
D´um cardume e seu adágio.

Pudera a Estrela do Norte...
Pudera a manhã nascer sem teu brilho cair.
Antes de um suave esformigado no peito.
Antes que tua calma mostrasse
que não tens os mesmos defeitos
de um pescador solitário.

E na madrugada serena,
expiro os candelabros,
e um relento ameniza o cansaço.

Salve, Manhã! Da Estrela do Norte
nenhum brilho resta, que pena,
senão o brilho desta lágrima eterna,
escorrendo e somando
mais uma gota salgada no mar.

domingo, 16 de agosto de 2009

O processo de Moscou


Assisti Moscou há poucas horas. Assim que saí do filme, lembrei de uma situação que aconteceu há um tempo com alguns companheiros do cineclube: após uma sessão de um filme do Coutinho, estavam vagando pela rua e viram o próprio. Contaram-lhe da coincidência, e Coutinho foi suscinto e irônico na resposta: - O acaso é Deus. Fiquei me perguntando se também não foi o acaso um dos agentes definitivos que fizeram de Moscou um remédio às crises que eram o ponto de partida do projeto. Pois no filme de Coutinho, há outros dois co-diretores: Tchecov, escolhido por Coutinho como uma espécie de espelho; e Enrique Diaz, o outro ângulo da tríade que entrou em cena ao acaso.


Ao que me parece, o projeto consistia em filmar um processo inacabado da encenação teatral da peça Três Irmãs de Tchecov. Em uma das sequências iniciais do filme, a primeira reunião do projeto nos lança estas regras. Coutinho faz questão de esclarecer que escolheu a peça de Tchecov, porém foram os atores que escolheram o diretor teatral Enrique Diaz. E diz: “não quis lhes impôr nada”. Diaz, por sua vez, diz em sua primeira aparição no filme, enfatizando as palavras de Coutinho, que o projeto é tentar encenar em três semanas, um tempo mínimo, até onde puderem atingir da Três Irmãs.

Uma das tensões fundamentais da obra de Tchecov pode ser inferida da cena final da encenação de Tio Vânia, do argentino Daniel Veronese (Espia uma mulher que se mata), onde Sonia e Vânia trabalham – a primeira acredita que este trabalho é digno, pois é um exercício que os levará a algum lugar (o que existe é o sonho); o outro, derrotado, questiona se este trabalho o conduzirá ao ideal que nele existe (o que existe é o que está aqui). Coutinho se utiliza desta tensão para espelhar uma crise da Arte e do Cinema – possivelmente, tomando em conta que seu filme anterior Jogo de Cena, como Bernardet indica, é uma corajosa desconstrução de sua carreira de documentarista, o projeto ecoa mais amplo ainda, isto é: encontrar sentido em seu próprio ofício de documentarista, em seu próprio trabalho. Para onde levar o documentário após a auto-evidência de seus limites? Desmontadas as representações, para onde levá-las? Moscou é um lugar onde supostamente estivemos no passado, antes de irmos a uma cidade em crise, e para onde desejamos retornar no futuro – o passado e o futuro; de onde se vêm e o que se busca. Mas sabemos que não há tempo o suficiente para se atingir Moscou, isto é, não há tempo o suficiente para Enrique Diaz encenar As Três Irmãs. Tem-se apenas três semanas. Podemos parar por aqui – A crise deste projeto é almejar uma perfeição sabendo que o tempo é limitado; a eternidade em uma vida; Tchecov faz desta crise a tensão fundamental da ideologia comunista/modernista russa. Coutinho, por outro lado, faz desta a crise do aparato cinematográfico: os limites da câmera em captar o tema; senão uma crise ainda mais íntima e sensível da própria existência: os limites de uma subjetividade em se comunicar com outra, a insuficiência do discurso; e uma crise do próprio ofício: qual é o sentido de se agir, então?

Jogo de Cena é o projeto de uma desconstrução levada ao limite. Moscou, por outro lado, é um projeto de construção (Enrique Diaz, novamente citando Coutinho, deixa isto claro). Esta construção, contudo, traz consigo a certeza de que nunca atingirá seu ideal, pois não há tempo o suficiente para isto. Lançar este projeto é, por um lado, uma genialidade incomparável. Por outro, se Jogo de Cena exigiu coragem em se desconstruir, Moscou exige uma coragem ainda mais absurda em lançar-se o desafio de almejar se construir. É como um último suspiro de quem indaga acerca de sua própria possibilidade de existir. O resultado é, para mim, um dos documentários mais esplêndidos do século. Acaso ou não, fato é que Enrique Diaz caiu como uma luva para jogar este jogo.



Vi apenas uma peça de Enrique Diaz (A gaivota, tema para um conto curto), e a experiência foi forte o bastante. Sua familiaridade com o universo de Tchecov é anterior ao filme de Coutinho. Também, como o próprio afirma, seu trabalho gira em torno da desconstrução da representação e da construção do personagem, exercício também presente em Moscou, quando os atores, num primeiro momento, narram os próprios dramas (menção direta de Coutinho a jogo de cena?), e num segundo, buscam encenar o drama alheio. Alguns dos projetos de Diaz têm em si mesmo a marca de ensaio de uma peça. A própria peça é o ensaio de um grande clássico, uma busca dos atores de encontrarem uma natureza mais íntima daqueles personagens e a representarem, como que quase de improviso. Esta representação, porém, nunca é plena, isto é, os atores não “se tornam” os personagens. Pelo contrário, há uma variabilidade, fluidez e troca constante entre atores e personagens – os personagens surgem como forças presentes almejadas pelos atores em cada ato de representação, porém nunca atingidas, sempre embarreiradas pelo limite da representação. Enrique Diaz reconhece que existe um limite do ato de representar, e que um ator nunca se torna seu duplo perfeito. Daí, o seu caráter de ensaio.


Moscou segue a mesma tônica. É um filme de ensaio. Um filme de processo. A palavra ensaio nos remete à idéia de algo inacabado, ainda a ser trabalhado exaustivamente à perfeição da representação. A perfeição da representação, na peça de Tchecov, é a capital da Rússia. Mas nossa condição de existência não é Moscou – o limite está presente desde o princípio do jogo: para Diaz, o limite de tempo; para Coutinho, o limite do aparato. O processo é imperfeito, graças às limitações. Porém, é o único processo possível de construção. Coutinho faz seu discurso com brilhantismo refletindo-o em seu objeto, e em seu método. Este reconhecimento de limites perpassa o filme inteiro, lançando-se para diversos âmbitos: a memória, o discurso, a imagem.

Qual é o sentido de se construir algo, se a limitação impede a perfeição? Se tudo que resta é o processo? Para isto, é necessário dar-se a conhecer o que emana do próprio processo. Por isto a necessidade de Coutinho em estabelecer esta espécie de jogo. E o que emana do processo é algo de inefável – do processo é que temos um vislumbre dos personagens. Da peça de Tchecov. Do tom inebriante de Enrique Diaz. Do vigor e da beleza que capturamos aqui e alí das construções de Coutinho. Longe de um formalismo, trata-se de ouvir se a tal Moscou ecoa no processo instaurado. Em síntese, trata-se de observar em que medida os atores foram capazes de explorar seus personagens dentro de um rigor ensaístico, e se Diaz foi capaz de construir, neste mesmo processo, uma força estética e uma aproximação de qualquer ordem com a peça de Tchecov. Tal qual nas peças de Diaz, onde o espectador tem espaço privilegiado, e é figura decisiva na compreensão ou não do processo, apenas este pode julgar se desta tentativa de se aproximar de um tema, ou de um conjunto de personagens, lhe irá advir quaisquer epifanias sobre a natureza íntima destes.

O testamento final de Coutinho é de um entusiasmo absoluto com sua arte. Uma crença que seu ofício é válido simplesmente por que, em alguma medida, é capaz de atuar sobre um espectador. O processo é válido pelo que nele subjaz. Como afirma Diaz na conversa inicial com o elenco, “ainda que saibamos que não atingiremos o resultado final, iremos trabalhar com seriedade, sempre visando o resultado final. E veremos até onde podemos ir.” O tom é esperançoso. Poderia ser o último filme de Coutinho. Mas este reconhece a incessante necessidade de se trabalhar e de se vivenciar o processo, sua validade histórica, que está para além da possibilidade ou não de se atingir a capital russa. Uma réplica à tensão de Tchecov. Ao mesmo tempo, uma ode ao cinema. Um confiança que o homem ainda deve viver, ainda que com nostalgia e expectativa, ainda que não seja Deus. E que o documentário ainda tem caminhos a serem explorados, apesar da condição existencial de distância entre os homens, e a falibilidade do discurso, da memória e da imagem.

Moscou se insere em um espaço raro na história do cinema documentário. É um elixir quando este tipo de cinema já começa a parecer desinteressante. É também o melhor filme que vi de Coutinho.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Duas tábulas rasas


Assisti a encenação teatral de Moby Dick, dirigida por Aderbal Freire Filho, há poucas horas. Visto ter errado nas especulações que fiz sobre a peça no texto que escrevi sobre o livro, seria justo tecer uma breve reflexão sobre as excelentes resoluções que o diretor encontrou para os impasses que havia indicado. A eliminação do narrador Ismael não resultou em uma hipérbole shakesperiana centralizada entorno da figura de Ahab. Pelo contrário, se tornou uma reflexão sobre o mecanismo da encenação teatral. O resultado é uma adaptação, na maioria das medidas, de esplêndida fidelidade com o que é um dos livros mais enigmáticos da história. O elogio é duplo: além de tornar o problema de adaptação em uma qualidade, soube abarcar a complexidade da questão de Melville sem desbancar para a facilidade de leitura suposta em um clássico. Aderbal Freire Filho conseguiu ser “melvilliano”, senão por um único detalhe. Porém, talvez o detalhe mais fundamental. Se não chega a ser um erro, é ao menos um indicativo de algo a ser compreendido. É isto que comentarei.


Primeiramente, tentemos supor o processo de transposição do livro à peça: a eliminação do personagem de Ismael, o personagem-chave do livro, é a eliminação da figura de um narrador incompatível com a arte teatral. Concepção magistral: o teatro é uma arte de encenação, uma arte representativa onde (relembrando a dualidade clássica mostrar-narrar) não há espaços para um narrador. É preciso encontrar seu equivalente. Aderbal Freire Filho nos propõe que os equivalentes teatrais do Ismael literário são os próprios atores, não estes em seu ofício, mas estes enquanto indivíduos livres e aptos a representar. No fundo da representação há uma figura humana. Execução magistral: Temos nas primeiras cenas um leve endereçamento a isto - o princípio do livro que trata da chegada de Ismael é riscado, visto que este não existe na peça, para, ao invés disto, nos deparamos com um processo visível de construção dos personagens. Mas, tal qual o livro, é preciso aguardar até o prólogo para que tudo isto se evidencie. Por trás da representação estão Ísio, Orã, André e Chico.

Este processo de construção, perfeitamente transposto, remete à narrativa de Moby Dick. O capitão Ahab, trágico shakesperiano, é obcecado por se vingar da grande baleia branca que arrancou sua perna. Melville, e também nisto a adaptação é feliz, jamais deu a indicar exatamente o que é que a baleia representa. Para além disso, parece nos exigir que a interpretemos de algum modo, que lancemos sobre ela alguma representação, quando, tudo que sabemos, de fato, é que a baleia resiste com violência a qualquer espécie de controle ou conhecimento. Como já havia dito, a pretensão de Ahab é a pretensão de conhecimento e controle do que é incogniscível e incontrolável. O capitão trágico rejeita sua condição humana e desafia os deuses. Deste conflito, apenas Ismael sairá ileso. Ismael reconhece os limites do homem e os limites da representação.

A peça desenha o mesmo conflito de cabo a rabo. Põe em cena as digressões, explora as nuâncias literárias por um lado. Por outro, reconhece os limites da literalidade. Faz dos livro botes de caça que a baleia irá destroçar. Ergue a bandeira vermelha com o gavião, talvez o símbolo maior das pretensões que Melville aponta estarem a se afundar no confronto com a baleia branca. Apenas um mero detalhe que lançará a peça em um sentido distinto do livro.

Há uma diferença leve entre o tom que Aderbal imprime à peça e o tom que Melville imprime ao livro. Ainda que ambos sejam polivalentes, indo da ironia à dramaticidade, da tragédia ao cinismo – é no grau de variação destes tons que há uma diferença um tanto brusca. A peça os realça, o livro os ameniza. Os atores-narradores da peça ora representam a tragédia, ora a comédia; ora um personagem, ora outro – tudo levado ao extremo da representação, por vezes até caricatural. Esta pluralidade é uma técnica conhecida no teatro contemporâneo, e tem um princípio básico que fica evidenciado na peça – a representação pode morrer, porém o ator não morrerá. E o homem é uma tábula rasa, um sem-número de possibilidades que à cada instante, encena uma delas. Desde as desconstruções do humanismo, tendo seu ápice nas filosofias existencialistas, o homem foi destituído de suas faculdades e lançado a um esvaziamento absoluto. O instante é enfatizado. A variação de tom é radical se num momento podemos ser trágico, e no outro cômico.

Ismael não é trágico, nem cômico, é outra coisa. Seu tom amenizado não é plural, mas uno. Ainda que a variação exista, ela encontra seus limites, pois remetem sempre à estílistica do mesmo narrador. A tragédia é um auto-martírio do homem ao tomar consciência do limite de sua condição perante os deuses. A comédia, uma auto-ironia de si mesmo, quando levar-se a sério enquanto criatura humana é “trágico” demais. E se a peça vai de um extremo ao outro, de momento em momento, o caminho de Melville é uma terceira via: o homem é também uma tábula rasa, uma variação de tons e digressões. Porém, esta tábula rasa não funciona através de um processo de construção e desconstrução de representações à cada instante, mas ecoa através do tom uníssono de Melville, nunca demais trágico, nunca demais cômico. E por mais que reconheça os limites da literatura ao tentar dar conta do tema da baleia branca, não põe de lado, destrói ou ridiculariza o conteúdo que lançar-se nesta empreitada contêm. Ao contrário disto, é um estudioso dedicado e entusiasmado com a literatura, a cetologia, e todas as espécies de conhecimentos frágeis do homem, pois são estes conhecimentos frágeis que nos são possíveis, e estabelecer diálogo com eles em uma cadeia de trocas, em uma dialética, com verdadeiro entusiasmo e paixão, é o que une os homem em uma mesma condição – uma condição que não deseja ser maior que os deuses, porém tampouco despreza a si mesmo. E que acredita em sua própria potência de comunicação. No fundo, nem cômico, nem trágico.

A desconstrução da representação não deveria visar um esvaziamento, mas um encontro do homem com uma natureza íntima que subjaz na representação. O prólogo da peça parece compreender este princípio. Porém, resta que vejamos esta natureza íntima ecoar no tom da peça. Se são os atores, enquanto seres humanos, que se encontram no fundo da representação, e se no princípio e no fim da peça isto é esclarecido, falta que esta condição perpasse todo o movimento da peça, dando-lhe unidade. Fico me perguntando se não seria o caso de Aderbal subir também ao palco...

A diferença entre duas tábulas rasas – uma tem como medida a figura uníssona de Ismael; a outra, sem esta medida, faz da pluralidade uma variação de gêneros e representações. A arte contemporânea, influenciada pelas filosofias de desconstrução, de um modo geral, opta pelo segundo caminho.

Mas a façanha já está realizada - A peça soube pôr em cena os dramas de Ahab e nos propõe uma solução próxima, porém distinta, da resolução de Melville. E repito: soube, sobretudo, adaptar um dos clássicos mais enigmáticos da história sem deixar perder a latitude da obra, e sem cair nos caminhos fáceis possíveis. O que nos resta? Um elogio à excelência de Aderbal Freire Filho. E uma veneração à genialidade de Melville.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Glauco

Confesso que, relendo A República, senti admiração por esta figura mais ordinária, talvez inventada por Platão para justificar o discurso de Sócrates, para dar ao discurso uma aparência de maiêutica, quem sabe. Aqui vai uma seleção de seus melhores momentos:

- É verdade.
- É evidente.
- Estou de pleno acordo contigo.
- Muito justo.
- Não há dúvida.
- Nada mais certo.
- Percebo.
- Com toda a certeza.
- Com efeito.
- Necessariamente.
- Acordado, sem dúvida
- É incontestável.
- Efetivamente.
- Boa notícia!
- É forçoso que assim seja.
- Atento, e vejo que falas verdade.
- Como sempre, tuas palavras tem lógica.
- Acredito que não pode ser de outra maneira.
- Essa observação é inteiramente exata.
- Considero-a prudente nas suas deliberações.
- Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.
- É evidente que chegará a esta conclusão.
- Sim, por Zeus!
- Por Apolo! Que maravilhosa superioridade!

Por mais que soe como piada, a postura de Glauco é admirável. Um discurso verdadeiro só é verdadeiro na medida em que é identificado pelo outro como parte interior de si. Glauco está aberto ao mundo, disposto a ouvir e interessado no que alguém tem a lhe dizer. Por vezes, faz perguntas, incentivando Sócrates a expressar-se mais justificadamente. Por vezes, supreende-se ("Por Apolo!") quando parece ter uma epifania ou compreender uma conclusão válida. E permite que Sócrates coloque e justifique seu ponto-de-vista sem ameaçá-lo ao ver-se contrariado, ou fechar os tímpanos para manter suas certezas - desenvolve com Sócrates a dialética mais suscinta, sem conflitos egóicos. Também não é um seguidor - exige uma explicação de Sócrates ao invés de ter fé absoluta em suas opiniões de princípio. Ao contrário de um Polemarco, Trasímaco ou Adimanto - quem sabe até do próprio Platão, em alguma medida.

Admiro Glauco. Queria que Glauco também tivesse escrito sua versão da República... O primeiro documentariasta? Hoje em dia, acho que deviamos lembrar de Glauco com mais carinho, pois só quem sabe que nada sabe pode ser verdadeiramente simples. E as vezes, estamos mesmo derrotados e cansados. Falta-nos simplicidade em nossa relação com o mundo, talvez por que a gente ache que saiba demais e temos pouco o que aprender.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Visão da Alvorada


Posso ver-te a me esperar, quando a ave costeira
entoa à madrugada tão serena elegia. Fulgura à vista,
Saña-cinzenta, quais assobios, em sobrevôos nas gramíneas
não recordam, a mim, a capa alaranjada que nos encobre
de tão ardente alvorada.

Vejas tu, querida, o calmo chacoalho
das ametistas, o amor dos órfãos e dos artistas,
as réstias violáceas detrás dos montes, de um Sol
turvando o mal, lançando nos campos um vento litoral.
E o esplendor pontual de tudo que existe
neste quarto, antes que os sonhos morram,
antes que o frio seja visceral, que a molúria
de existir nos cause fastio de espírito, que
venhamos a esquecer o sentido
impresso em cada coisa, ou
o quão triste, o quão fáustico,
é o eterno retorno do temporal.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Sobre Nomes e Números


Quando a alma se rodeia de espectros
dum mundo no qual existo em exílio
uma criança abriga um rosto tão repleto
de remelas de medo da tesura.

Torniquete sagrado das manhãs,
há mais que um azul fustigado
no parto das coisas belas? Há mais
que luzes que não se extinguem breves?

Quando a alma se rodeia de espectros,
ansioso, a distância calculo:
São mais do que dois, menos que um.
Mais do que dois, menos que um.

... e todos dançavam.

Mortas incertezas são dúvidas
de q´as vagarosas ondas inda quebram,
que, da lira, inda ecoa um remédio,
que, no mundo, ainda habita a ternura.

E quando à madrugada, com teu sibilo doce
orfêica me trouxeste teu sulfrágio,
as perenes recordações, não mais
q´amarguras de um menino pernoitado.

Donde vão, fantasmas celestes, com
teus números minuciosamente orquestrados?
São mais do que dois, menos que um.
Mais do que dois, menos que um.

... e todos dançavam.

Quando a alma anseia por completo,
talvez seja terrível o que sois. Mas como
reverbera a lira sendo dois?
Pretendes ter mais nomes que cidades?

Quando a alma se rodeia de espectros,
e a visão se lança ao mundo exilada,
as palavras morrem aos poucos...