sexta-feira, 10 de julho de 2009

Debate sobre Arte e Verdade: Heidegger e Schapiro


Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger propôs um tratado onde pretendia fazer vir a luz a natureza íntima do que é a arte, sem imbutir sobre a arte quaisquer teorias filosóficas anteriores. A pretensão (demasiadamente pretensiosa certamente) não é propriamente um objetivismo radical, nem um distanciamento frio do objeto em questão. O método que Heidegger vai herdar e desenvolver da fenomenologia é de outra natureza: Heidegger reconhece que, na lida diária com as coisas, já estamos, de algum modo, nos relacionando com elas através de determinados pré-supostos; o que a filosofia Heideggeriana pretende é ultrapassar estes “pre-conceitos” imediatos e “deixar vir a luz” uma coisa em seu próprio modo de ser, “respeitando” o modo tal qual a coisa vêm a luz – exercício antes hermenêutico do que propriamente fenomenológico – Envolver-se com uma coisa, evitar impôr sobre a coisa teorias dadas de antemão, e deixar a coisa trazer à luz seu modo de ser.

Antes de se lançar nesta empreitada, o filósofo varre o caminho através de uma crítica das interpretação tradicionais da coisa, isto é, de como, na história da filosofia, até então, haviam entendido o conceito de “coisa”, o ser-coisa, ou a coisalidade da coisa: a coisa como substância com seus acidentes; a coisa como a unidade de uma multiplicidade de sensações; e por último, na qual o autor mais se detêm em análise, a coisa como síntese de matéria e forma. As críticas não são tão novas, sobretudo para quem já está minimamente familiarizado com a filosofia heideggeriana: A) a dualidade substância x acidentes deriva de uma tradução desenraízada dos termos gregos. Na realidade, tanto substância quanto acidentes co-pertencem a uma fonte mais originária que esta dualidade sequer desenvolve; B) as sensações parecem ser o acesso mais imediato às coisas, a rigor, o que é dado na sensibilidade. Porém, “jamais, na ocorrência das coisas, percebemos primeiro e propriamente, como ele pretende, uma afluência de sensações (...) Para ouvir um mero ruído, temos de deixar as coisas, afastar o ouvido de as ouvir, isto é, ouvir abst
ractamente”. Resumindo, de modo bem mais sintético: Mais próximos de nós do que as sensações estão as próprias coisas. Inclusive, para que se dê a sensação, é necessário que, de antemão, já tenha se dado algum contato com a coisa; C) A dualidade matéria-forma, desde o idealismo alemão tida como interpretação comum da coisa, enraiza-se na “serventia do apetrecho”. Apetrecho designa “o que é fabricado expressamente para ser utilizado e usado”. Heidegger aponta que, se é a “serventia do apetrecho” que determina tanto a forma quanto a matéria, este comportamento adotado frente ao ente visa a produção e, portanto, “não constituem, de modo nenhum, determinações originais da coisidade da mera coisa.” (A crítica se estende à idéia bíblica de conceber a totalidade dos entes como “criados”, o que aqui nem a mim, nem a Heidegger, interessa tanto). Há nesta crítica da matéria-forma como modo-de-ser originário da coisa um ponto fundamental que o autor nos recorda: A estética, enquanto corrente filosófica, fundou-se na concepção da arte como matéria enformada. Aqui, não se trata de um debate estéril ou divagações – o que Heidegger pretende é redirecionar a filosofia da arte para bases de outra espécie que não a pedra angular sobre a qual a estética a compreende. Este ataque à estética, à necessidade de erudição para a experiência artística, e sobretudo, o foco na intenção do criador, na figura do artista, é o que irá render a Heidegger a crítica do esteta Meyer Schapiro em The Still Life as a Personal Object – A Note on Heidegger and van Gogh.

A crítica de Schapiro peca por uma incompreensão radical das premissas Heideggerianas, e se executa inteiramente na descontextualização de uma interpretação realizada pelo filósofo alemão do quadro de um par-de-sapatos pintado por Van Gogh. Pelos desdobramentos de Schapiro, me parece que o mecanismo desta descontextualização ocorre não por má fé do esteta, mas por um real desentendimento do pensamento Heideggeriano. Em minha visão, é por conta deste desentendimento de base que a crítica não procede, e todo o esforço de Schapiro serve somente na medida em que corrigir seu desentendimento adquire validade e riqueza na medida em que re-atualiza a reflexão de Heidegger sobre a verdade da Arte e esclarece com relevância algo sobre a Arte.

Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger descreve os sapatos pintados por van Gogh como sapatos de camponês, um apetrecho que, pela obra de arte, revela a verdade de um mundo. Schapiro, através de um esforço biográfico do autor, irá demonstrar como, na realidade, o sapato pintado pertence antes a um homem da cidade naqueles tempos do que a um camponês. Segundo Schapiro, Heidegger projetou sobre o quadro suas tendências subjetivas a um pathos do primordial e telúrico, mantendo-se distante da verdade mesma da obra: “Alas for him, the philosopher has indeed deceived himself. He has retained from his encounter with van Gogh´s canvas a moving set of associations with peasant and the soil, which are not sustained by the picture itself. They are grounded rather in his own social outlook with its heavy pathos of the primordial and earthy. He has indeed “imagined everything and projected it into the painting.” He has experienced both too little and too much in his contact with the work. (…) Though he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed – indeed ‘the universal essence of things,’ ‘world and earth in their counterplay’ – this concept of the metaphysical power of art remains here a theoretical idea. The example on which he elaborates with strong conviction does not support that idea.”
O problema fundamental que Schapiro procura denunciar em Heidegger é que o autor supostamente deixou passar a presença do artista na obra (“Heidegger would still have missed an important aspect of the painting: the artist´s presence in the work”). Mas este deixar-passar é mais consciente e natural à reflexão do filósofo do que Schapiro parece querer. A idéia de autor tem como fundamento a intencionalidade do criador, que Heidegger, senão rechaça, põe as palavras em outros termos, perfeitamente cabíveis com o que virá depois em sua tese sobre a arte. Já no primeiro parágrafo do livro, isto é posto de modo bastante claro: “A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua proveniência essencial. Segundo a compreensão normal, a obra surge a partir e através da actividade do artista. Mas por meio e a partir do quê é que o artista é o que é? Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si mesmos, e na sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte.”

O apontamento é simples: sujeito e objeto, criador e criatura, se dão a partir de um mesmo princípio. Antes de artista ou obra de arte, se dá a própria arte. Mais do que isso: o artista se retrai no surgimento da obra que é, em essência, o pôr-se em obra da verdade. De fato, Heidegger define a arte como “o pôr-se em obra da verdade”. A arte acontece no momento em que uma verdade é posta em obra. Mas o que a crítica de Schapiro “deixou-passar”, interessado em validar a Estética como juiza última da arte, é exatamente quais as características desta “verdade” posta em obra na obra de arte.

De modo assertativo, Schapiro colocou que a obra mesma não responde à descrição que Heidegger faz do quadro de van Gogh, e baseia esta assertativa, por um lado, na intenção do autor, e por outro, no fato de que o objeto “representado” por van Gogh não condiz com o objeto que Heidegger julga estar ali. Quanto ao primeiro argumento, é muito simples: a obra de arte esta muito além da “intenção” do criador. Esta suposta intencionalidade remete apenas ao apetrecho, ao que é fabricado, tem solidez e serventia. Retomando a colocação Heideggeriana, a única intenção do artista na obra é suprimir a si mesmo, servir de meio para que a verdade seja posta em obra. A “intenção” do artista, na realidade, já nos diz muito pouco sobre a obra de arte, e menos ainda sobre a arte enquanto tal. O segundo argumento me soa tão antiquado quanto: o que é que o objeto supostamente representado por van Gogh nos diz sobre a obra? O que nos diz sobre a Arte? Sobretudo, há mesmo representação?

(...) será que com a proposição “a arte é o pôr-se-em-obra-da-verdade” se pretende reanimar de novo aquela idéia, em boa hora superada, segundo a qual a arte seria uma imitação e cópia do real? A reprodução do que está perante nós requer, aliás, a conformidade com o ente, a adaptação a este (...) A conformidade com o ente vale, de há muito, como a essência da verdade. Mas será que o que queremos dizer é que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de camponês que realmente está aí, e é uma obra porque consegue fazê-lo? De modo nenhum. Portanto, na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas.

Permanece a questão: o que é a verdade que a arte põe em obra? Já clarificamos que não se trata da representação de um objeto, nem de intenções do autor. Tampouco se trata da essência geral do objeto representado, como Schapiro chega a declarar: he credits to art the power of giving to a represented pair of shoes that explicit appearance in which their being is disclosed. Na análise da Fonte Romana, Heidegger deixa isto claro: Aqui não está retratada poeticamente uma fonte de facto existente, nem é o reflexo da essência geral de uma fonte romana. O sentido mesmo da arte, da verdade posta em obra, que é o que faz a obra de arte ser uma obra de arte e o artista ser um artista, é de outra ordem ainda.

A obra de arte acontece através do combate entre Terra e Mundo. A verdade posta em obra vêm a ser através deste combate (no sentido grego do termo, um combate não sintético, mas de uma unidade que mantêm duas forças, continuamente em movimento, uma a superar a outra, porém sem que jamais nenhuma delas venha a se suprimir). Ao invés de matéria e forma, Heidegger nos propõe uma dualidade distinta para se compreender a natureza da obra de arte: Terra e Mundo.

A crítica de Schapiro parece novamente se confirmar ao demonstrar que o “mundo” dos camponêses que, segundo Heidegger, a obra de arte revela, não passa de uma projeção do filósofo, insustentável pela obra em si: The philosopher finds in the picture of the shows a truth about the world as it is lived by the peasant owner without reflection. Mas aqui, mais uma vez, o mecanismo é mal compreendido, desta vez, por um vício historicista do esteta, herdado das mesmas correntes metafísicas de onde herdou-se a dualidade matéria-forma. Segundo Heidegger, a obra de arte não revela um mundo que existe de antemão. Pelo contrário, ela instaura um mundo. Não há um mundo “antes” da obra de arte e, portanto, não há uma “verdade sobre um mundo” a ser revelada. No pôr-se em obra da verdade, isto é, na arte, um mundo, pela primeira vez, se instaura. Também, antes do acontecimento da verdade, posto em obra na obra de arte, não há sequer história: A verdade, diz-se com efeito, é algo intemporal e supratemporal. Porém, a verdade funda a história e, nesta medida, e somente nesta medida, é igualmente histórica. A arte é histórica somente na medida em que instaura a história pela primeira vez: Sempre que a arte acontece, a saber, quando há um princípio, produz-se na história um choque, a história começa ou recomeça de novo. (...) História é o despertar de um povo para sua tarefa, como inserção no que lhe está dado. (...) Como instauração, a arte é essencialmente histórica. Isto não significa apenas: a arte tem uma história, no sentido exterior de ela ocorrer também na mudança dos tempos, ao lado de muitos outros fenômeno, e de aí se ver sujeita a transformações e perecer, oferecendo à história aspectos mutáveis. A arte é histórica, no sentido essencial de que funda a História e, mais propriamente, no sentido indicado. Assim posto, a leitura Heideggeriana do quadro de Van Gogh, diferentemente do que pretende Schapiro, não visa descrever a verdade do mundo camponês revelada pela obra. Este ponto é fundamental: se há um erro na interpretação de Heidegger, trata-se de um equívoco histórico, e não um problema de entendimento sobre a natureza da arte. Apenas caso a verdade fosse um dado histórico e não uma origem em si mesma, é que tal crítica poderia se impor sobre o entendimento de Heidegger acerca da arte. Mas a verdade surge do nada, é uma origem que ocorre por um jogo de clareira e obscuridade. Não pode haver uma verdade posterior à história, se é o acontecimento da verdade a própria pré-condição da história. (Tanto o conceito de verdade, quanto o método de pensamento Heideggeriano, mais do que Platônico, é, sobretudo, pré-socrático). De fato, é toda a erudição acerca do passado, e o transporte da arte a um suplemento compreendido apenas como manifestação cultural, é que Heidegger põe de lado para nortear sua busca pela arte em seu próprio modo de ser.

Abandonemos por um instante os ataques incisivos de Schapiro e tentemos entender a arte como origem. Onde exatamente Heidegger quer chegar com isso? A arte é um pôr-se em obra da verdade. Este pôr-se em obra acontece através do combate entre Mundo e Terra. A Terra é “o infatigável e incansável que está aí para nada. Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo”, é algo que rejeita abrir-se, que permanece a escapar da claridade a todo instante, essencialmente insondável, e que resiste continuamente a qualquer tentativa de sentido, cálculo ou precisão. Sobre a Terra, e na Terra, é que um Mundo se instala. Porém, somente na medida em que a obra instala um Mundo sobre a Terra é que a Terra surge enquanto tal – não está aí, à luz, como algo de insondável, antes da obra. Somente a obra que “deixa que a Terra seja Terra”. O Mundo, em contrapartida, é da ordem do sentido, “o sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser. Onde se jogam as decisões essenciais da nossa história, por nós são tomadas e deixadas, onde não são reconhecidas e onde de novo são interrogadas, aí o mundo mundifica (...) Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza.” Mundo e Terra diferem de Matéria e Forma de modo essencial – Diferentemente da Matéria, a Terra resiste qualquer imposição de sentido, e ao invés de se ocultar na Forma, ela vêm a tona no Mundo. Ao confrontar-se com o Mundo, a Terra demonstra sua impenetrabilidade. Matéria e Forma nos falam apenas sobre o apetrecho produzido. Sobre a criação artística, trata-se do combate entre Mundo e Terra.

Devemos ir com cautela por todos estes termos para compreender o mecanismo de Heidegger: Mundo e Terra acontecem apenas na medida em que há obra. Mas a obra também só acontece na medida em que há arte. A arte, neste sentido, é origem. Mas em que momento exatamente a arte acontece, se não é cristalinamente na obra? Não poderia ser na obra, se apenas a partir do momento em que a arte acontece é que há tanto obra quanto artista. A arte é o que vêm primeiro instaurar todo o demais, e ele exige mais do que uma obra para acontecer. É neste ponto que toda a tese de Heidegger se lança à frente das críticas de Schapiro – além de um criador, é necessário igualmente quem a salvaguarde: “Mas, quando uma obra não encontra os que salvaguardam, ou não os encontra imediatamente, de tal modo que eles respondam à verdade que acontece na obra, isso não significa de modo algum que a obra permaneça obra, mesmo sem os que salvaguardam. Ela permanece sempre, se aliás é uma obra, ligada aos que salvaguardam, mesmo se, e precisamente quando, só aguarda os que salvaguardam e espera alcançar a comunhão na sua verdade. (...) Se a arte é a origem da obra, então quer isto dizer que deixa surgir, na sua essência, a co-pertença essencial na obra dos que criam e dos que salvaguardam” A recepção da obra é tão fundamental quanto a criação no acontecimento da verdade pela obra de arte. Recepção não é aqui o termo adequado, mas a comunhão de uma verdade instaurada pela arte, uma instância no rasgão aberto pela obra. O rasgão aberto pela obra é “a juntura de traçado e risco fundamental, de diâmetro e contorno”. Somente quando há esta instância é que há arte, pois a arte é “a salvaguarda criadora da verdade na obra”.

A instância na obra, porém, não é uma decisão de um sujeito autônomo. Pelo contrário, é apenas na medida em que a obra surge estranha e solitária, que torna intranquilizante o que antes era tranquilizante, quanto mais aparentemente dissolve todas as relações imediatas com o homem é que “nos empurra e nos lança nesta (em sua) abertura e, ao mesmo tempo, nos arranca ao habitual. Seguir esta remoção significa: alterar nossas relações habituais com o mundo e a terra e, a partir de então, suspender o comum fazer e valorar, conhecer e observar, para permanecer na verdade que acontece na obra.” Na medida em que esta instância se dá é que podemos denominar um ente como obra-de-arte. Uma resposta a Schapiro emerge: O quadro de Van Gogh só é uma obra de arte na medida em que Heidegger se insere no espaço circunscrito pelo quadro e, nesta inserção, tem suas relações habituais com mundo e terra transformadas. Antes, nem depois disto, consiste a pintura uma obra de arte. A descrição do quadro, como aparece em Origem da obra de arte, é menos uma reflexão sobre o mundo cuja verdade é desvelada (como Schapiro assumiu), e mais um pontual comentário sobre como pode um mundo e uma terra erigir a partir da experiência artística. No fundo, trata-se de desvincular o acontecimento da arte da figura do criador única e simplesmente e compreender que “a instauração só é real na salvaguarda”.

Se faltou um critério histórico a Heidegger na compreensão do quadro de Van Gogh, foi por falta de erudição acerca dos processos de criação do quadro. Mas criação é apenas uma parte do acontecimento da arte – a salvaguarda é a outra. Enquanto Van Gogh pintar um quadro, isto não o classifica como arte há menos que a salvaguarda deste quadro instaure algo de novo, há menos que alguém se depare com este quadro e, neste deparar-se, aconteça uma verdade, uma reconfiguração do espaço, uma sacralização do mundo e um retrair da terra, um habitar desta pessoa em seu envio histórico. O mero conhecimento acerca dos processos de criação artística de Van Gogh, por mais que ajudem à compreensão de determinados mecanismos, não passam de erudição que nada diz sobre a natureza essencial da arte em seu próprio acontecimento.

É esta disparidade temporal possível entre criação e salvaguarda (digamos, por exemplo, mais de um século que se passou entre a pintura de Van Gogh e a leitura de Heidegger) que permanece pouco explorada no livro de Heidegger, uma tarefa que Gadamer assumiria para si. Sobre esta disparidade temporal, ainda será válido um comentário final: tende-se a pensar que a compreensão de arte heideggeriana não permite uma re-atualização da obra em outros tempos, isto é, que ainda haja arte em um quadro de Van Gogh hoje em dia. Isto ocorre por que Heidegger não considera que a arte habita a obra, mas o contrário – e o acontecimento da arte é pontual, instaura o novo no momento da salvaguarda – antes, nem depois disso, pode-se falar em obra de arte. Isto não quer dizer, necessariamente, que a releitura de obras-de-arte de outros tempos é impossível. Apenas que, para que ainda sejam obras, é necessário que executem o rasgão sobre o habitual. Ainda assim, a maneira como ocorre esta releitura é o que permanece pouco refletida, pelo menos em A Origem da Obra de Arte. Para concluir, um lembrete válido de se comentar: E, então, provém a verdade do nada? Sem dúvida, se por nada se entende a mera negação do ente, e se este se concebe como aquilo que habitualmente está aí disponível. (...) O projeto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua oferta a partir do habiual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí histórico. Segundo Heidegger, a arte é Poesia no sentido de um projeto poemático (e não no sentido da poesia de linguagem que, apesar disto, tem um espaço proeminente, visto que, para o alemão, toda linguagem é poesia). Este projeto poemático é na verdade um princípio que já, oculto, contêm o fim. A finalidade já existe latente no princípio, porém sem o meio. O princípio é um salto antecipativo em que, “o que ainda há-de vir já está ultrapassado, se bem que veladamente”. Ao que nos parece, a arte executa o desvelar deste princípio que, no fundo, é um levá-lo ao fim.

Como todo grande filósofo, as leituras de Heidegger exigem paciência e uma constante busca de compreensão de como funciona seu pensamento. E o que está em jogo aqui é a corrente da Estética, que se tornou dominante para as filosofias da arte, fundadas, segundo o alemão, em bases inteiramente falsas no que se refere à natureza mesma da arte. É a esta natureza que sua reflexão se remete, em oposição aos estudos acerca da vida, obra e processo de criação de objetos já de antemão definidos como artísticos, um conhecimento que pouco condiz com a experiência artística em si mesma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário