terça-feira, 6 de abril de 2010

O carro de Kiarostami


O elemento recorrente do carro na filmografia de Kiarostami não denota um conjunto de fetiches, como foram os clichês hitchcockianos, ou um artifício simbólico, como os signos sócio-históricos abrangentes de Angelopoulos, mas um sentido de outra ordem, muito mais contemporâneo em sua premissa. O carro não tem conotação representativa de qualquer natureza – não é símbolo, arquétipo ou alegoria, nem aponta para sequer uma figura ou idéia que esteja além do que se vê – por outro lado, seu recurso tampouco nasce de um interesse meramente estético ou formalista. O carro de Kiarostami é uma montagem, um set up, ou um jogo que dispõe os elementos iniciais em uma formação específica, afim de que o misè-en-scene encontre nesta montagem um valor que só através dela pode encontrar. Assim, a ferramenta é o recurso de aproximação/distanciamento, e nunca um filtro que distorce a realidade que aborda. O que quer dizer – não interessa tanto a imagem do carro em suas camadas possíveis, e tampouco a distância que o carro gera entre o espectador e o real, mas o resultado deste jogo de isolar um homem do mundo em seu interior, o mise-en-scene que brota desta estrutura tomada como ponto-de-partida. O que só me leva a crer que o que adquire maior relevância no cinema-carro de kiarostami não é em hipótese alguma o real, termo que parece nem existir no vocabulário do diretor iraniano, mas, em definitivo, o resultado de uma determinada forma de misè-en-scene. Porque, no fundo, esta mesma estrutura parece nos dizer categóricamente que o cinema não é nada além de misè-en-scene.


A estrutura em carro tem seu envio histórico, ainda que seu berço não se resuma a isto: refere-se a um meio de modernização e aproximação territorial, de supressão das distâncias. É como um trem, porém dirigido pelo indivíduo auto-centrado. Os road movies norte-americanos da década de 70 procuraram nele uma possibilidade de liberdade, deslocamento e busca – o espírito yankee sempre foi um de tomar a liberdade individual como cerne e motor de qualquer processo histórico, desde o desenho de sua constituição onde o estado é anti-paternalista e o indivíduo luta contra o leviatã, as vezes vencendo, as vezes perdendo. Outras culturas enxergaram o mesmo evento como um problema. O tema remete a uma crise que se instaura com a globalização e criação de uma rede universal de comunicação, recorrente em outros filmes da década de 90, como O passo suspenso da cegonha de Angelopoulos, ou A Fraternidade é Vermelha, de Kieslowski – enquanto para Kieslowski a questão é teológica e para Angelopoulos é material e sócio-histórica, para Kiarostami, é antes de tudo uma questão de dispositivo, de meio. Kiarostami reclama ao carro a imagem-dispositivo do que se tornou o espaço público na vida moderna, em sua brutal ausência de compartilhamento e experiência – o veículo evidencia a distância entre o homem e o mundo, e a solidão que desta distância resulta. Utilizando-o como espaço de um esquema cinematográfico é que o diretor iraniano procura encontrar o quão próximos e o quão distantes, o quão frios e o quão humanos os homens se tornaram efetivamente por conta da introdução deste “meio”.

Em termos estritamente cinematográficos, suas crenças já haviam sido formadas em seus filmes pré-carro. Close up anunciou o princípio recorrente em sua carreira de buscar registrar estados de alma e emoções humanas em seu estado mais vívido. Contrapondo-se à figura do jornalista que é incapaz de pausar passivamente ao lado de um movimento do mundo, e que exige um primor técnico de áudio e imagem que pouco tem haver com emoções humanas, Kiarostami recorre ao plano-sequência afim de deixar correr no plano um estado de alma. Mas o plano-sequência não é um posicionamento ético neo-realista ou uma questão ontológica baziniana que busca abrí-lo às forças do mundo que escapam à intenção do ser humano. É um recurso cinematográfico tão expressivo quanto quaisquer outros, que traz em sua essência determinadas possibilidades do narrar associadas a uma aproximação íntima entre o aparato e o evento no mundo que o artista intenciona observar. O recurso do close up, mote do filme, é uma sucessão de primeiros planos balazianos onde as emoções de personagens, fictícios ou não, vem à tona e podem ser acompanhadas em “tempo real” para que possam ser entendidas em sua natureza mais própria.


O Gosto das Cerejas
aponta os limites de uma certa estrutura de vida no Irã dos anos 90, e realização cinematográfica dentro de um conjunto de valores. O carro surge como um vetor que movimenta território adentro um personagem altivo, isolado do mundo, capaz de estabelecer com o próximo nada mais que relações capitalistas contratuais. Busca pagar alguém para realizar um ato que está fora de quaisquer valores ético-religiosos, enterrá-lo após um suicídio de motivações taciturnas – “Você pode até entender o que eu sinto”, ele diz em determinado momento, “mas não pode sentir o que eu sinto”. A crise exposta é a do paradoxo da imagem elaborada a partir da janela de um carro – o carro como uma estrutura de vida moderna que observa a fluidez do mundo sem jamais ser capaz de se relacionar com o grande deserto bege e árido que está do outro lado. O carro é uma estrutura de relação com o mundo e de produção da imagem e da arte cujos limites de elaboração são evidenciados por Kiarostami. Não se trata de condenar o piloto tanto quanto de acreditar que seu modo de estar no mundo deve, para seu próprio bem, hibernar – não sabemos se comete suicídio de fato ou não. Apenas que há um limite claro do que é possível se observar, compreender e vivenciar a partir da janela de um carro, a partir de um dispositivo e recurso, e que este dispositivo deve pôr-se em estado de espera ou morte em determinado momento da história quando houver exaurido sua potência, para que possa, em outro momento, renascer com vigor. Como as amoras e as cerejas, é uma questão de estações que vêm e vão.

A alternativa é a ferramenta digital, um outro aparato capaz de se aproximar do mundo e observá-lo por outra perspectiva – abruptamente, os desertos áridos se tornam campos verdes repletos de vida, e a fria montagem em plano-contraplano é substituída por planos conjuntos de trabalho e vivência compartilhada, aproximada. No fundo, é menos uma questão de postura do homem e mais uma questão de dispositivo, e de como um determinado dispositivo evoca efeitos específicos no misè-en-scene (e impõe certas condições de trabalho). Sobretudo, de como um meio é mais apropriado a dar respostas a certas questões do que outro e, por isso, é mais apropriado a reverter certas situações épocais, como uma fruta está ligada à cada estação.


Seu filme seguinte, E o vento nos levará, não leva a reflexão adiante tanto quanto a desloca para uma espécie de cinemanovismo afim de, sob as mesmas bases assentadas, dar a conhecer qual é efetivamente a crise que um “mundo em redes” vivencia e os confins que a comunicação de massa é incapaz de compreender. Um jornalista vai a uma vila para fotografar um ritual de morte, e a premissa é arrojada desde as sequências iniciais – o fotógrafo deve largar o carro para trás para conseguir acessar o vilarejo. Também deve aguardar a morte da figura real para que possa fotografar seu fantasma. Nesta espera é que o personagem-central consegue se relacionar com um modo de viver instaurado naquela comunidade, e com a própria vida em si mesma. A informação global é aquela obtida pela janela de um carro, e que não carrega senão a morte do objeto do qual deseja se aproximar, quando o entendimento da vida está, pra além de questões morais, em um espaço acessível somente a pé, em um tempo de espera que recusa deslocamentos ou antecipações.



É principalmente a partir de então, em filmes como Dez, Shirin ou Five, que o carro perderá todo vestígio de conotação representativa e se tornará pura e simplesmente uma armação de misè-en-scene – o carro não quer dizer nada além do que ele é em si mesmo - um mecanismo que busca o mesmo que era procurado em Close up – estados de alma e sentimentos humanos - porém agora embarreirado pelas condições iniciais impostas pelo ethos de um período histórico onde o carro, mais que símbolo, é a pré-condição. Encontrar a humanidade dos relacionamentos e sentimentos dentro destes parâmetros virtuais contemporâneos se tornou sua possível obsessão, uma meta que o lança à uma investigação longe de se exaurir, que progride, adiante, em busca de respostas a perguntas que ainda fazem sentido, pondo em cena personagens novos à cada filme, para que um sistema como este, tão dependente da originalidade e profundidade de suas figuras, não se torne um repeteco, e que traga os frutos adequados enquanto ainda for sua estação, enquanto seu sistema ainda se sustentar.

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