
Para não ser raso como uma bacia de lavar pé, acredito que seja necessário ir atrás de referências artísticas extra-cinematográficas que o próprio autor não nos esconde, mas que pouco tem haver com a reflexão e intenção da arte do século XX (o que, naturalmente, tende a nos afastar do próprio cinema) – tem haver com a arte sacra e iconoclasta do mundo medieval, com a música de Bach, a pintura de Da Vinci, e a poesia de Rilke ou Trakl, e, naturalmente, com Arseni Tarkovski, seu pai – é, sobretudo, referente a um momento em que a arte teria a obrigação de executar um milagre em conta do sacrifício do próprio artista. – Há semelhanças nas finalidades de um Van Gogh que corta a própria orelha e nas de um Domênico ao atear fogo ao próprio corpo em praça pública.

Por outro lado, Tarkovski reconhece que estes ideais artísticos devem ser re-aplicados no século XX, através de um homem já absolutamente desencantado com sua possibilidade de operar um milagre, que se tornou um cientista dominador e assustado, um ateu cínico como o escritor de Stalker ou a tradicional e egoísta família russa em sua casa de campo retirada diretamente dos contos de Tolstoi, Dostoievski ou Tchecov (suas demais influências vêm da arte russa do final do século XIX e começo do século XX) que observamos em Sacrifício. Nisto reside seu maior paradoxo - Quem é este sujeito, e como ele deve operar este milagre? Em vista do que e através do quê, quando o desencantamento da história de toda civilização humana já não nos permite sequer acreditar na potência do homem de superar seu próprio estado de ser através da fé no milagre e no mistério dos acontecimentos do mundo? O personagem central de praticamente todos os filmes de Tarkovski é este homem em crise de fé que se põe em movimento em busca de superá-la – a fábula que Alexander conta a seu filho no princípio de Sacrifício, sobre o homem que deve regar a árvore morta até que ela esteja novamente viva, reitera esta condição e eterna necessidade de resgatar o milagre primordial.
Tarkovski dedicou o filme a seu próprio filho: no contexto específico de Sacrifício, o filho de Alexander passa por um momento onde, devido a uma operação na garganta, ainda não pode falar. Durante seu repouso, anuncia-se a possibilidade de uma catástrofe que só pode ser impedida por um milagre que cabe a Alexander executar através de seu martírio, abdicando de seus pertences, de sua família, de sua casa, de seu filho, e até de sua sanidade – o gesto redentor que irá lhe consumir. A partir daí, por suas muitas vias, àquela maneira tarkovskiana brilhante de unir subjetividade e objetividade em um registro enigmático, que salta da intimidade à frieza num instante, e dificilmente se permite perceber o ponto-de-vista da narrativa, sempre de ambiência carregada e de simbolismos fechados, herméticos, o filme passa a elaborar a perspectiva íntima de Alexander em relação a este gesto, tendo como única finalidade a salvação de seu filho, a dádiva da palavra ao “pequeno homem”, e a possibilidade de indagar o por quê das coisas – o filme termina com o filho deitado sob a árvore que plantou junto do pai e perguntando em sua primeira emissão de voz após a operação: “No princípio, era o verbo. Por que, pai? Por que?”
A impressão que temos é que todo o trajeto de Alexander não visava senão oferecer-lhe a possibilidade de fazer-se esta pergunta – a ambiguidade do “por quê”: ao mesmo tempo em que põe em cheque a verdade de uma proposição, também procura compreender a verdade que subjaziria a esta proposição para renová-la. A grande dedicação que Tarkovski faz a seu filho (ou o que lhe é doado com seu sacrifício) é a oferenda da possibilidade de ter o quê, sobre o quê, e a partir do quê indagar, de ter, em síntese, uma voz. Dádiva esta que o diretor russo também recebeu de seu pai, o poeta Arseni Tarkovski que, certamente, permaneceu, de seus primeiros aos últimos filmes, como a referência central.
Mas há algo ainda sobre isto a se entender, para que não passamos ao largo da questão: Sacrifício é um filme bastante raro na história do cinema no que se refere à abordagem da relação pai-filho. Possivelmente, por ser uma arte “nova”, foi costumeiro que o cinema, desde seu princípio, nesta relação, se tomasse a perspectiva do filho, normalmente, um filho bastardo, herdeiro de Caim. Apesar de não ser o grosso, ainda há um punhado generoso de filmes que tomam a perspectiva do pai (penso, por exemplo, em Ozu, Visconti ou João Cesar Monteiro). Mas o pai sempre surge como a figura esquecida, com impulsos de morte, que, na melhor das hipóteses deveria ser resgatada pela geração posterior. Neste ponto, Tarkovski assume um discurso um tanto quanto radical: A possibilidade do potencial criativo de uma nova geração é dádiva do pai, e somente através de seu gesto efetivamente criativo é que dá-se a possibilidade do filho agir no mundo. Através de sua armação de figuras míticas, o essencialismo de Tarkovski nos carrega, reconfigurando-se à cada plano e sequência, pelos confins deste gesto criativo do pai.
E o que talvez seja o mais importante de tudo: o gesto criativo nasce da percepção do Apocalipse, dos problemas materiais e históricos que vive um mundo. Quando, em seu aniversário, descobre que o mundo irá acabar, Alexander diz a si mesmo: “aguardei toda a minha vida por este momento”. É então que põe-se a rezar a fim de resgatar a fé em si mesmo, em um plano-sequência magistral, bergmaniano (contudo, sem suas conotações críticas), que termina em um primeiro plano de seu rosto a pedir a Deus pela salvação; É então, também, que misteriosamente descobre o como deste ato, e precisa fazer amor (em uma relação de elevação mística) com aquela que detêm o instinto materno de acolher seus anseios; É então que se sacrifica em nome deste ato, e põe em chamas a própria casa de campo que habita (o fogo, elemento recorrente no final de seus filmes), origem de todo o mal, aceitando cometer um sacrifício não para restaurar a ordem vigente das coisas, mas para dar a possibilidade de que seu filho seja um outro.
Vendo este filme, só podemos sentir saudade de um tempo em que talvez nunca tenhamos vivido, onde a arte nascia da necessidade de enfrentar uma crise do mundo, mesmo aos custos da própria alma, e não de um desejo contemporâneo vago, egóico, inefetivo e descomprometido de se expressar. Ah, estranha nostalgia desta espécie de homem...
belo texto. Concordo plenamente com a perspectiva do filho, um dos atos mais belo que já vi. No final de uma carreira, um sacrifício para que o novo possa vir, questionar e, principalmente, tomar seus próprio rumos. Uma radicalidade bela, belíssima.
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