sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Sacrifício

Reassisti poucas horas atrás O Sacrifício (1986), do Andrei Tarkovski – último e possivelmente o filme mais inquietante do autor, dono de uma das obras mais consistentes da história do cinema. Esta obra parece nos aproximar de temas existenciais-espirituais característicos de uma tradição européia específica que engloba obras como Diário de um pároco de aldeia (Robert Bresson), A Palavra (Carl T. Dreyer) ou Luz na Escuridão (Ingmar Bergman) - ao mesmo tempo, nos coloca frente àquele universo especialmente único do autor, místico e sombrio, natural e onírico, objetivo e subjetivo, oferecendo-nos, através da singular existência deste universo, respostas às crises mais fundamentais que esta tradição enfrentava.

O que nos dificulta o entendimento na obra do diretor russo são seus ideais artísticos, tão incomuns no século XX, e tão distante da maioria das experiências cinematográficas até então, que suas relações com outras películas ou mecanismos estéticos não nos vale senão superficialmente. No máximo, vemos ecos da narração de lendas místicas e mitos regionais realizada nos planos tableaus de Parajanov – diferentemente do ucraniano, porém, o personagem central do russo é sempre um sujeito em crise com sua própria espiritualidade, ou melhor dizendo, com a maneira pela qual esta espiritualidade (ou falta de) da cultura humana violentou um mundo místico e natural; não se trata do tradicional e já exaurido embate entre o ocidente e as demais culturas, mas do ocidente consigo mesmo, com aquilo que o animou em primeiro lugar e que, em determinado momento, simplesmente se perdeu. Isto quer dizer: Tarkovski nunca rejeitou a cultura européia-católica-ocidental. Pelo contrário, sempre a afirmou em seu mais pleno sentido, ou seja, no sentido inaugural. E em seu mais pleno sentido, é uma cultura que enxerga o mundo como um espaço de mistérios e milagres.

Para não ser raso como uma bacia de lavar pé, acredito que seja necessário ir atrás de referências artísticas extra-cinematográficas que o próprio autor não nos esconde, mas que pouco tem haver com a reflexão e intenção da arte do século XX (o que, naturalmente, tende a nos afastar do próprio cinema) – tem haver com a arte sacra e iconoclasta do mundo medieval, com a música de Bach, a pintura de Da Vinci, e a poesia de Rilke ou Trakl, e, naturalmente, com Arseni Tarkovski, seu pai – é, sobretudo, referente a um momento em que a arte teria a obrigação de executar um milagre em conta do sacrifício do próprio artista. – Há semelhanças nas finalidades de um Van Gogh que corta a própria orelha e nas de um Domênico ao atear fogo ao próprio corpo em praça pública.



Por outro lado, Tarkovski reconhece que estes ideais artísticos devem ser re-aplicados no século XX, através de um homem já absolutamente desencantado com sua possibilidade de operar um milagre, que se tornou um cientista dominador e assustado, um ateu cínico como o escritor de Stalker ou a tradicional e egoísta família russa em sua casa de campo retirada diretamente dos contos de Tolstoi, Dostoievski ou Tchecov (suas demais influências vêm da arte russa do final do século XIX e começo do século XX) que observamos em Sacrifício. Nisto reside seu maior paradoxo - Quem é este sujeito, e como ele deve operar este milagre? Em vista do que e através do quê, quando o desencantamento da história de toda civilização humana já não nos permite sequer acreditar na potência do homem de superar seu próprio estado de ser através da fé no milagre e no mistério dos acontecimentos do mundo? O personagem central de praticamente todos os filmes de Tarkovski é este homem em crise de fé que se põe em movimento em busca de superá-la – a fábula que Alexander conta a seu filho no princípio de Sacrifício, sobre o homem que deve regar a árvore morta até que ela esteja novamente viva, reitera esta condição e eterna necessidade de resgatar o milagre primordial.

Tarkovski dedicou o filme a seu próprio filho: no contexto específico de Sacrifício, o filho de Alexander passa por um momento onde, devido a uma operação na garganta, ainda não pode falar. Durante seu repouso, anuncia-se a possibilidade de uma catástrofe que só pode ser impedida por um milagre que cabe a Alexander executar através de seu martírio, abdicando de seus pertences, de sua família, de sua casa, de seu filho, e até de sua sanidade – o gesto redentor que irá lhe consumir. A partir daí, por suas muitas vias, àquela maneira tarkovskiana brilhante de unir subjetividade e objetividade em um registro enigmático, que salta da intimidade à frieza num instante, e dificilmente se permite perceber o ponto-de-vista da narrativa, sempre de ambiência carregada e de simbolismos fechados, herméticos, o filme passa a elaborar a perspectiva íntima de Alexander em relação a este gesto, tendo como única finalidade a salvação de seu filho, a dádiva da palavra ao “pequeno homem”, e a possibilidade de indagar o por quê das coisas – o filme termina com o filho deitado sob a árvore que plantou junto do pai e perguntando em sua primeira emissão de voz após a operação: “No princípio, era o verbo. Por que, pai? Por que?”

A impressão que temos é que todo o trajeto de Alexander não visava senão oferecer-lhe a possibilidade de fazer-se esta pergunta – a ambiguidade do “por quê”: ao mesmo tempo em que põe em cheque a verdade de uma proposição, também procura compreender a verdade que subjaziria a esta proposição para renová-la. A grande dedicação que Tarkovski faz a seu filho (ou o que lhe é doado com seu sacrifício) é a oferenda da possibilidade de ter o quê, sobre o quê, e a partir do quê indagar, de ter, em síntese, uma voz. Dádiva esta que o diretor russo também recebeu de seu pai, o poeta Arseni Tarkovski que, certamente, permaneceu, de seus primeiros aos últimos filmes, como a referência central.

Mas há algo ainda sobre isto a se entender, para que não passamos ao largo da questão: Sacrifício é um filme bastante raro na história do cinema no que se refere à abordagem da relação pai-filho. Possivelmente, por ser uma arte “nova”, foi costumeiro que o cinema, desde seu princípio, nesta relação, se tomasse a perspectiva do filho, normalmente, um filho bastardo, herdeiro de Caim. Apesar de não ser o grosso, ainda há um punhado generoso de filmes que tomam a perspectiva do pai (penso, por exemplo, em Ozu, Visconti ou João Cesar Monteiro). Mas o pai sempre surge como a figura esquecida, com impulsos de morte, que, na melhor das hipóteses deveria ser resgatada pela geração posterior. Neste ponto, Tarkovski assume um discurso um tanto quanto radical: A possibilidade do potencial criativo de uma nova geração é dádiva do pai, e somente através de seu gesto efetivamente criativo é que dá-se a possibilidade do filho agir no mundo. Através de sua armação de figuras míticas, o essencialismo de Tarkovski nos carrega, reconfigurando-se à cada plano e sequência, pelos confins deste gesto criativo do pai.

E o que talvez seja o mais importante de tudo: o gesto criativo nasce da percepção do Apocalipse, dos problemas materiais e históricos que vive um mundo. Quando, em seu aniversário, descobre que o mundo irá acabar, Alexander diz a si mesmo: “aguardei toda a minha vida por este momento”. É então que põe-se a rezar a fim de resgatar a fé em si mesmo, em um plano-sequência magistral, bergmaniano (contudo, sem suas conotações críticas), que termina em um primeiro plano de seu rosto a pedir a Deus pela salvação; É então, também, que misteriosamente descobre o como deste ato, e precisa fazer amor (em uma relação de elevação mística) com aquela que detêm o instinto materno de acolher seus anseios; É então que se sacrifica em nome deste ato, e põe em chamas a própria casa de campo que habita (o fogo, elemento recorrente no final de seus filmes), origem de todo o mal, aceitando cometer um sacrifício não para restaurar a ordem vigente das coisas, mas para dar a possibilidade de que seu filho seja um outro.

Vendo este filme, só podemos sentir saudade de um tempo em que talvez nunca tenhamos vivido, onde a arte nascia da necessidade de enfrentar uma crise do mundo, mesmo aos custos da própria alma, e não de um desejo contemporâneo vago, egóico, inefetivo e descomprometido de se expressar. Ah, estranha nostalgia desta espécie de homem...

Um comentário:

  1. belo texto. Concordo plenamente com a perspectiva do filho, um dos atos mais belo que já vi. No final de uma carreira, um sacrifício para que o novo possa vir, questionar e, principalmente, tomar seus próprio rumos. Uma radicalidade bela, belíssima.

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