domingo, 10 de maio de 2009

Impressões sobre "O Outono do Solitário"


É um pouco natural para mim ter uma obsessão imediata por buscar incessantemente compreender aquilo que, em um primeiro contato, me arrebata para além de qualquer compreensão, que me toca em profundidade; em geral, não fico satisfeito apenas com o mero toque. Atribuo a esta obsessão por compreensão um interesse imediato, uma profunda atração que senti pelo universo hermético de Georg Trakl, desde o primeiro contato, e uma necessidade vital de destrinchar o que exatamente, nos versos finais de De Profundis, nas palavras crassas e desritmadas, objetivas e úmidas, assombradas e enfraquecidas, o que exatamente nelas inundava a alma.


À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó de estrelas
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos

O universo de Trakl me surgia radicalmente fechado em si mesmo, e eu me sentia instigado a tentar abrí-lo de algum modo. O comentário de Rilke sobre o poeta austríaco é bastante esclarecedor: dizia que sua poesia nascia em um espaço fechado, “como de alguém que estivesse excluído e se comprimisse contra a vidraça”. Lendo-o cada vez mais, Trakl logo se tornou um dos meus poetas favoritos, uma grandíssima influência em todos os campos artísticos. Espero que esta preferência por universos tão ensimesmados não diga tanto sobre mim quanto imagino dizer. De qualquer modo, achei que, com o começo deste blog, seria um bom momento de tecer alguns comentários sobre impressões que tive de suas poesias e dos estudos que li sobre este grande poeta.

Com razão, Georg Trakl foi associado às vanguardas expressionistas (o desencantamento com o mundo e o sentimento de aprisionamento são evidentes), e sua poesia nasceu de um enveredamento bastante único de toda a tradição poética alemã, se tratando, sobretudo, de uma resposta a determinadas concepções de mundo dos poetas românticos, de Goethes a Holderlin, e que ultrapassam influências bastante claras do simbolismo de Baudelaire e Rimbaud. Porém, observado com cautela, todo o seu texto é estranhamente sóbrio (contrariando determinadas interpretações de que o uso de drogas foi responsável pelas imagens desenvolvidas pelo escritor), de uma lucidez assombrosa até em formular suas próprias idéias artísticas, o que, para um poeta viciado, que vivenciou passivamente uma guerra mundial e cometeu suicídio, em decorrência, aos 26 anos, tal maturidade sempre me soou abismal. Suas soluções jamais foram lançar-se em direção a uma escrita ébria, mas formular, imagem por imagem, uma estilística bastante própria.

O que é exatamente a “expressão” contida no expressionismo de Trakl? Observemos alguns versos de Grodek:

Ao entardecer, as florestas outonais
ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas
e os lagos azuis, por sobre os quais rola
um sol sombrio: a noite abraça
guerreiros moribundos, o lamento selvagem
das suas bocas destroçadas

O que temos exatamente é uma descrição de um ambiente. O narrador se esconde por trás deste ambiente – ele narra suas visões sem jamais se colocar no plano das palavras – são raríssimos as poesias na qual Trakl coloca um eu-lírico de qualquer espécie. Esta atitude não denota distanciamento, porém passividade. Não frieza, mas incapacidade. O homem de Trakl já não é um sujeito, pois é incapaz de agir no mundo, de exercer força sobre a ambiência à sua volta, e está condenado a manter os olhos abertos frente a todas as calamidades que o cercam sem poder interrompê-las em instante algum. O eu-lírico não vêm a tona por que não pode atuar nem construir o espaço. É um narrador aprisionado em suas próprias observações de um ambiente do qual está excluído. Estes versos de Grodek são alguns dos últimos de sua vida – as memórias do que o autor vivenciou como enfermeiro na primeira guerra, vendo os corpos mutilados nas batalhas sem poder fazer nada em relação a este “lamento selvagem”.

O expressionismo trakliano não é um movimento único de projeção do interior no exterior, de “expressar” pura e simplesmente, mas um duplo movimento: no próprio ato de apreender a ambiência, o narrador se projeta de algum modo sobre ela, distorcendo-a, porém, sem modificá-la. Estas distorções da ambiência, em Trakl, surgem através de um processo de desritmia, de uma métrica de elaboração descontínua, e principalmente, do acompanhamento de um adjetivo ou modo de caracterização de cada nome (“bocas destroçadas”, “lamento selvagem”, “guerreiros moribundos”, “armas mortíferas”, “florestas outonais”, etc...), recurso que será radicalizado em todos os sentidos possíveis. Esta “caracterização” dos nomes é uma distorção que parece não proceder do narrador, mas do próprio ambiente. Isto é, o narrador parece jamais escolher “como” caracterizar a ambiência que está à sua frente. O “moribundo” que caracteriza o “guerreiro” não é uma opção de narrador – não se trata de um sujeito universal autônomo e absoluto, mas de um indivíduo excluído e passivo, incapaz de lidar com o ritmo mesmo das coisas – o “moribundo” como caracterização do “guerreiro” é a única caracterização possível, e não há outra ambiência que não esta para um narrador tão sofrido.

Esta caracterização da ambiência irá atingir um nível enorme de distorção, e logo praticamente toda a poesia de Trakl será montada através destes processos de associações e distorções, sobretudo através de sinestesias:

Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos

A sinestesia não é para Trakl um ponto de partida, mas um eventual ponto de chegada, o resultado de determinadas percepções sensoriais do mundo à sua volta. Estas percepções sensoriais da ambiência são por vezes tão ambíguas, que, para exprimí-las, é necessário ultrapassar as associações diretas e mais palpáveis, e inundar os sentidos ao ponto de confundí-los inteiramente. De 1912-1914, no final de sua curta carreira, o processo de sinestesia irá se voltar diretamente para o uso estético e simbólico das cores, que irei comentar melhor adiante, e que constituirá o caminho mais fácil de compreensão das referências históricas impressas na obra de Trakl.

Além das sinestesias, a personificação também será utilizada à exaustão. O sentido deste uso é bastante simplório, na realidade: se a atitude do homem trakliano é a de exclusão e passividade frente a um mundo de sentidos confusos e a impossibilidade absoluta de transformá-lo, o agente de todos os movimentos narrados são os elementos da própria ambiência. Neste sentido, a ambiência de Trakl é personificada, causadora dos movimentos que pouco tem haver com quaisquer intencionalidades do homem que a observa em passividade. As imagens poéticas enquadram elementos autônomos na ambiência, que tem suas próprias ações personificadas:

Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde

De todas as poesias de Trakl, a que mais me interessou foram os primeiros versos do poema “O Outono do Solitário”, que viriam, a meu ver, a formular exatamente o que é seu processo de expressão e compreensão da existência – irão colocar em jogo um gama enorme de qualidades que, tanto temática quanto estilisticamente, em acordo com o resto de sua obra, me soam como um forte resumo. Apesar de identificar em Grodek um maior furor, de ver em De profundis um hino , de achar Sebastião no sonho mais enigmático, ou de ter em Aos emudecidos uma melhor tematização secular, acho que são nos estrofes iniciais de O Outono do Solitário que residem suas principais palavras.

Volto o escuro outono cheio de fruta e opulência
Brilho amarelado dos belos dias de verão
Um puro azul emerge da capa em decadência;
O vôo das aves traz ecos de lendas ao serão
Pisadas estão as uvas. Na tranquila ambiência
Pairam leves respostas à velada questão.

No universo de Trakl, certamente as imagens tem prioridade sobre a discursividade. Refiro-me a imagens em um sentido quase Bergsoniano (‘imagens’ como percepções mais imediatas da realidade, mediadas pelos sentidos). Estas imagens imediatas não exigem reflexão ou um encaminhamento mais consciente, pois se localizam na própria mediação entre o interior e o exterior. Em Trakl, estas imagens estão no ambiente onde se encontra o narrador. As últimas palavras deste verso põe em pauta uma crença que me parece fundamental às pretensões de Trakl: o espaço é capaz de revelação. A questão fundamental está velada, obscurecida. Porém, na ambiência há “leves respostas”. Em que estado estão estas “leves respostas”? Elas “pairam”, isto é, estão lá, largadas... “pairando”. Perante este trecho, não seria estranho que Heidegger iria utilizar da poesia de Trakl para suas formulações tardias sobre espaço, linguagem e poesia. De qualquer modo, a tranquila ambiência nos responde sobre algo que está velado. Este algo velado jamais virá à luz, tal como todo círculo hermético construído pela poesia de Trakl não nos vêm à luz em integridade. A citação de Rilke aqui se aplica: estamos diante de algo fechado, algo velado, como que diante de uma vidraça. Jamais nos envolvemos em plenitude com o que se encontra por trás desta vidraça. Colados a ela, temos apenas leves respostas, temos apenas imagens. Assim acredito ser a experiência fundamental da poesia de Trakl – não se trata de criar compreensão ou estranhamento – trata-se apenas de se colar nesta grande vidraça e, eventualmente, através das imagens poéticas que dela imergem, se envolver de algum modo com este universo pouco contíguo. Experienciar os versos descritivos de Trakl é uma maneira de compartilhar do estado de espírito do autor e do ambiente onde este se encontra, pois suas imagens nascem de um verdadeiro choque de ambos. Compartilhar estas imagens é o único modo de comunicação possível segundo a poesia Trakliana. Apenas leves respostas, a velada questão é inacessível. O contato entre dois nunca é pleno. Comunicação interrompida. Comunicação que tem por interlocutor um vidro: do outro lado, há uma alma inteiramente distinta, hermética, um mundo de leis próprias que se esgotam em si mesmo. Este sentimento de “exclusão”, na obra de Trakl é sempre presente, sempre justificado, a cada verso.

Mas esta poesia de vidro tem ainda alguns desdobramentos necessários: 1. Esta exclusão fundamental do homem, apesar de dolorífica, sufocante, é proeminentemente um berço de criação. Não é um culto do isolamento, mas uma observação de suas consequências; 2. O fato de jamais se ter acesso à velada questão senão através de leves respostas que pairam no ambiente terá como efeito a cor azul. Este segundo tópico exige um recúo histórico mais delicado. O primeiro, apesar de referencial, é posto em cena no título (“O outono do solitário”) nos primeiros versos, ditando a tônica do poema:

Volta o escuro outono cheio de fruta e opulência
Brilho amarelado dos belos dias de verão

A associação entre Outono e Solidão: a dialética das estações tem origem, principalmente, no interesse do romantismo por uma natureza que expresse o estado de espírito; e na tradição poética européia, esta dialética foi lida e relida de diversos modos, com diversas consequências. Trakl irá fazer do outono uma estação que está intimamente ligada ao distanciamento entre homem e mundo, um apartamento radical e desarmônico, responsável por uma exclusão frutífera. No escuro do outono há fruta e opulência. Em diversos momentos do poema isto é retomado: “Em sombrolhos de cansaço aninham-se já estrelas”; “Em frias casas entra um surdo cumprimento / E anjos saem silenciosos de janelas”, etc... A repetição desta estrutura coloca este mundo que impõe ao homem um isolamento como, também, um espaço de criação. Criação, porém, que tem na desarmônia, violência e escuridão o seu substrato. O formato de aproximação da ambiência com um vidro também irá fazer surgir o azul: “Um puro azul emerge da capa em decadência”. O Azul romântico tem o sentido de “nostalgia do uno”, os românticos assumiram para si mesmo a tarefa de re-encontrar este uno na multiplicidade. O estudo de Cristina Caliolo é bastante esclarecedor sobre a espécie de diálogo que Trakl procura com a tradição poética alemã. Em “Outono do Solitário”, o azul “emerge da capa em decadência”. Ao invés do vidro, a capa: transparência é substituída por opacidade. Da opacidade, do que é velado, da “capa” que aparta o homem do mundo é que emerge o azul. Esta capa se encontra em decadência, e dela emerge um vislumbre do uno – não se sabe se uma visão verdadeira da eternidade ou uma ilusão – na realidade, para Trakl, me parece, isto pouco importa - o que lhe interessa é a operação. O azul é recolocado na estrofe final do poema:

Em sombrolhos de cansaço aninham-se já estrelas;
Em casas frias entra um surdo cumprimento
E anjos saem silenciosos de janelas
Azuis - olhos de amantes em doce sofrimento;
Sussurram canas: e um horror ósseo nasce delas,
Quando salgueiros orvalham gotas negras num lamento

A referência ao azul dos românticos é direta. A estrutura se repete: “Em frias casas entra um surdo cumprimento / E anjos saem silenciosos de janelas / Azuis – olhos de amantes em sofrimento.” Os anjos e as janelas são associados à palavra azul. A ambiguidade do azul se sustenta. Entram surdos cumprimentos, saem anjos silenciosos. No fundo, a mesma relação de algo que emerge de algo que decai é repetida por praticamente todos os versos do poema. Neste jogo paradoxal de entradas e saídas, transparências e obscuridades, é que surge o azul, para Trakl, uma espécie de síntese que surge apenas na forma de esperança futura ou nostalgia passada.

Trakl é um poeta de mais paradoxos do que ambiguidades. Este paradoxal deriva da semântica romântica estrapolando seus próprios limites, sendo levada à confusão de seus sentidos. Ainda que eu esteja em dissonância com algumas destas concepções tradicionais que o poeta austríaco retoma apenas para tornar paradoxal, e ainda que não concorde com algumas de suas soluções, é difícil não admirar um poeta cujo interesse principal é expressar sua sensibilidade com a maior sinceridade possível, ainda que isso vá criar entraves de comunicação com seu leitor. Sua fidelidade absoluta com suas impressões do mundo já bastaram para suscitar meu interesse em sua obra. Pois, apesar de todo o esforço para explicar algo sobre o seu universo hermético, este exercício é sumamente desnecessário. Trakl, no fundo, não é nada além de pura ambiência.

Referências:
TRAKL, Georg. De profundis e outros poemas
NETTO, Modesto Carone. Metáfora e Montagem (um estudo sobre a poesia de Georg Trakl)
CALIOLO, Cristina. Azuis Românticos na lírica de Georg Trakl (disponível online em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-04072008-105939/)
Obra completa de Trakl em inglês disponível em http://www.literaturnische.de/Trakl/english/index-trakl-e.htm



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