terça-feira, 5 de maio de 2009

Dança e Utopia: de Miklos Jancsó a Bela Tarr



Traçarei um breve comentário sobre dois diretores de épocas diferentes, que estabelecem entre si alguma espécie de continuidade: Miklos Jancsó, diretor húngaro que teve o ápice de sua carreira nos anos 60 e 70; e Bela Tarr, húngaro também, cujo momento mais interessante teve começo nos anos 90 e se estende até a atualidade. A primeira aproximação dos dois é bastante óbvia e direta – são dois estetas radicais do plano-sequência . Cada qual, à sua maneira, também vai se encaminhar por vertentes simbolistas (curiosamente, muitos estetas do plano-sequência se encaminharam neste sentido). Não obstante, a relação entre eles é ainda mais profunda: Bela Tarr parece querer fazer de seu cinema uma espécie de releitura da obra de Jancsó, seu compatriota . A intenção que tenho aqui é evocar o sentido preciso que as sequências de dança irão ganhar na obra de cada um destes. Os dois, de modos bastante diversos, irão associar a dança diretamente à idéia de utopia.


Em Salmo Vermelho, Miklos Jancsó faz um filme sobre uma revolução camponesa no século XIX com a intenção de explorar os meandros das teses socialistas, e tensionar a relação entre a solução e o problema destas teses. O que temos por fim é uma visão bastante humanista de um processo violento, o que leva o espectador a se indagar: isto tudo é possível? É bastante simples: as teses socialistas utópicas tem como concepção histórica uma dialética materialista teleológica – a finalidade da história é a supressão dos conflitos de classe. Os personagens de Jancsó (ou deveriamos dizer, personagem? Pois é sempre o grupo que está em centro, nunca o indivíduo) são experiências vivas de uma comunidade onde não há classes. Os membros desta comunidade, contudo, não são naives o suficiente para ignorar as dificuldades que qualquer tese teleológica encontrará para se manifestar na prática. Mas estes são homens obstinados e, sobretudo, homens encantados. Fechar os olhos ao que está à sua volta suprimindo um determinado modo de ser não é propriamente uma questão de inocência, mas uma opção consciente e clarificada – para que uma ideologia social se instaure, ela necessita da adesão dos indivíduos. Porém, um idealismo comunal exige ainda mais: para que a História (leia-se aqui a História marxista, isto é, a que tem por fim a supressão do conflito de classes) encontre seu desfecho, é necessário que um “envolvimento livre” nesta comunidade sem classes e, mais do que isso, o sacrifício de todos os membros: É necessário que os indivíduos suportem as diversas pressões externas em prol de um ideal utópico de sociedade, que talvez jamais seja alcançado. Este sacrifício é um pré-suposto.

Mas a situação ainda ganha mais delineados. Miklos Jancsó coloca a sociedade sem classes como um ideal transcedental, de certo modo, “religioso”. O paralelismo entre socialismo e religião é indubitável: a inspiração primeira do filme veio de cantos/orações comunistas de um poeta do século XIX encontrada pelo autor, orações estas que serão exaustivamente repetidas durante o filme. Mas esta religiosidade jamais é condenada: diversos milagres ocorrem durante o filme. Uma enorme parábola fantástica filmada com tanta naturalidade que nos leva a indagar: Isto tudo é possível? Estes milagres são possíveis? O socialismo é possível? Jancsó, como todo grande artista, não nos responde: expõe as tensões, plano a plano, sequência a sequência, e nos debruça sobre ela como quem diz: lide com isso.

Conheco pouquíssimo da obra de Jancsó, e vi este filme apenas uma vez, há muito tempo. Mas a impressão foi fortíssima. Os desdobramentos estéticos vão longe: o filme tem apenas 20 e poucos planos, todos eles impregnados por danças e cânticos, movimentação constante de atores, algazarras mil ocorrendo em planícies longínquas e esvaziadas. As danças, na maior parte das vezes, alegres, sempre encantadas, se contrapõe continuamente com a violência externa (e interna, pois também no próprio grupo tensões se instauram). No espaço cênico, parece não haver nada além de gente caminhando e dançando. E a cada corte, a geografia muda, mas parece sempre a mesma. O humanismo de Jancsó volta seus interesses inteiramente para as relações sociais entre um grupo e o resto da sociedade, que pretende suprimí-lo à medida que ele ganha adeptos. E a dança exibe todo seu vermelho – todo o seu encanto com um ideal, encanto este que é ao mesmo tempo uma cegueira monumental quanto ao mundo ao seu redor. A dança, neste filme de Jancsó (e até onde sei, é neste filme, pela primeira vez, que a dança se tornaria um elemento de misè-en-scene simbólico e relevante) irá carregar todas as contradições que constituem exatamente o corpo da obra – o encanto e a cegueira (como já havia dito, uma cegueira “por opção”, cegueira consciente) caminham juntos e não há entrega na dança sem haver um esquecimento momentaneo de todos as pedras envolvidas no percurso em direção a um ideal transcendente. É exatamente desta “tensão sem supressão” que se dá a dança, e que se dá a alma do filme. É esta a tensão envolvida em toda utopia que já não é naíve. Nas décadas de Jancsó, em uma Hungria estando sob um segundo regime socialista há décadas, após enfrentar um levante revolucionário em 56 e os subsequentes descontentamentos com o regime, nenhuma utopia social poderia ser naíve.


A chave das danças de Bela Tarr não se encontra tão distante assim, visto ser a proposta de grande porção de seu cinema realizar uma releitura do modernismo crítico de Jancsó à luz das soluções narrativas e estéticas de uma tendência do cinema contemporâneo em construir o espaço a partir da própria “impotência da câmera”, de sua “impossibilidade de se ultrapassar determinados limites impostos pelo personagem”. Trata-se de matar dois coelhos com uma única cajadada: por um lado, tensionar uma crítica e retificação ao marxismo de Jancsó, por outro lado, questionar uma suposta intransponibilidade do aparato cinematográfico pré-concebida que, em certo sentido, se tornou hegemônica em grande parte do cinema mundial. Quanto à dança, estará presente em quase todos dos seus filmes. Desde Prefab People, um de seus filmes “realistas”, a dança já caracteriza uma determinada utopia histórica. A partir de Almanac Fall e Danação, seu cinema abandona a câmera na mão e entra na maquinaria, e a dança, além de se alongar, vai ganhando esteticismo. A partir de Satantango, mas sobretudo em As Harmonias de Werckmeister, Bela Tarr parece encantar-se com a possibilidade de transcendência, e esvai de seus planos quaisquer restos do realismo crítico que marcou o princípio da sua obra.

Em Danação, a interpretação que Tarr faz de Jancsó é pincelada às claras, e as palavras de uma das personagens é indúbia: “Que apaixonante multidão. Uma festa! A dança... Braços e Pernas, troncos e ombros funcionando em perfeita harmonia. O modo como falam... Movimentos, olhares que elevam o dançarino sobre problemas telúricos. Os jovens são tão apaixonados! Acredite em mim: não há nada como encontrar um ao outro quando há música que aquece o coração. Duas mãos dadas. Um pé sente onde o outro irá pisar. E segue, não importa onde o outro pisar. Porque ele acredita que estará voando de agora em diante. Em cada swing ou girada. Quem sabe? Talvez... esteja mesmo voando...”

O que em Bálsamo Vermelho é uma investigação das bases de uma teoria política, em Danação se torna uma questão mais filosófica e menos histórica, apesar de todos os paralelos que Tarr realizará com a situação da Hungria pós-abertura (o teleférico, no primeiro plano, é seco e direto). A dança é caracterizada por “perfeita harmonia”, pelos braços (que constroem) e as pernas (que caminham). Por duas mãos dadas, e pés que conhecem os movimentos. Pés que acreditam que estão voando e que talvez estejam, realmente. Após tudo o que foi dito sobre Jancsó, não se torna evidente os paralelos? O plano seguinte é um dos raros planos estáticos do filme, e de toda obra do Tarr. O enquadramento aberto emoldura o grupo que dança bêbado, abraçados, em círculo. Com alguma fidelidade, Tarr repõe Jancsó, porém não sem desdobramentos. No plano seguinte, ainda durante a dança, o personagem central observa a mulher que deseja trair o marido com um milionário. Em seguida, a chuva começa. Ao final da dança, ninguém mais está lá. Restam duas pessoas: uma senhora, espécie de profeta que “conhece a natureza das coisas” e a observa com tristeza e distância, personagem esta que, desde o começo do filme, anuncia o apocalipse. Um fatalismo desesperador, que soa a mim como um eco da literatura de Sandor Marai, é colocado em cena. Antes, ela também observava a dança à distância, isto é, observava o triste desespero das coisas que a dança, ou melhor, a utopia, pode mascarar por apenas algumas horas; o outro personagem que ainda resta após a dança continua a dançar, sobre uma poça que permanece da chuva, solitário e encantado. É o resto de uma utopia, um sonho que já não é coletivo. Durante a dança, este personagem, um resto do personagem-grupo idealista de Jancsó diz a uma mulher à sua frente: “Estou sentado aqui esperando por você, contando o tempo até eu fazer 70 anos. Nós nunca tivemos um filho. Mas outros tiveram mais a perder. Mas eu não o verei após a morte, querida. Porque nunca acreditei nisso, e você teve suas dúvidas. É apenas perto do anoitecer quando penso em você. Vejo sua testa cansada na poeira.”

Após o fim da utopia, que, como diz o personagem, “não deixou filhos”, resta a Bela Tarr comentar, a seu modo ao mesmo tempo estético, alegórico e filosófico, exatamente o que sobrou naquele bar decadente. A meu ver, o fundamental do cinema de Bela Tarr tem nestes dois personagens sua tensão e sua chave. A palavra com a qual a mulher se refere à dança é “harmonia”. Seu filme seguinte, uma pérola impressionante, entre a ingenuidade e a seriedade absurda, e também um de meus filmes preferidos, é exatamente sobre a tal da “harmonia”.

Na sequência inicial de Harmonias de Werckmeister, além de uma síntese exata do que é o personagem central, veremos como Bela Tarr se interessará mais por questões existenciais do que pelas ambientação sociais, econômicas e históricas, menos pela “danação” que constitui um determinado estado do mundo, e mais pela própria idéia de harmonia. É claro que estas sempre estarão presentes, mas a própria maneira de tratar o espaço será ligeiramente modificada. O filme é uma adaptação do livro de László Krasznahorkai, originalmente titulado Melancolia da Resistência. Verter o título já diz muito sobre as pretensões de Bela Tarr com este trabalho: investigar, junto de seu personagem, o que é a maior metáfora do filme – a afinação dos instrumentos em um sistema tonal semi-temperado executada pelo desconhecido, porém influente, Andreas Werckmeister.


A idéia de harmonia será introduzida e re-introduzida no filme em quatro personagens diferentes: Janös Valuska, Gyorgy Eszter, Tünde Eszter e o misterioso príncipe. Cada qual se relacionará com esta idéia de um modo distinto. Estranhamente, Bela Tarr irá condenar cada um destes personagens, respondendo a todas estas atitudes com um rigor extremo, “pincelando” todas as dificuldades de se estabelecer um conceito exato de harmonia, e retirando nosso chão de modo tão crucial, que qualquer luz de esperança nos parece distante.

O primeiro plano do filme irá pôr em tese todo o jogo de câmeras de Bela Tarr, a meu ver, um plano-síntese do que é o diretor húngaro busca exatamente com o cinema: Janos Valuska encena um eclipse utilizando o corpo de alguns bêbados. Primeiro, a luz. Então, a escuridão. Mas logo, novamente, a luz. A tese estética não é tão complicada assim: a eternidade se expressa através dos corpos. O misé-em-scenè é um meio de realizar, nas palavras de Janos, “uma explicação que até pessoas simples como nós poderão entender sobre a imortalidade.”, no movimento dos corpos, testemunhamos algo que nos ultrapassa, algo que nos transcende, algo de “sagrado”. E o que pode o homem fazer perante os corpos, senão observar esta revelação? Um cinema material, certamente. Mas também um cinema de observação. Observar os corpos, demorar-se em seus movimentos, é exatamente o acesso que a câmera tem à transcendência. A aproximação com Tarkovski, neste sentido, é aparentemente direta. Mas a misè-em-scene não é tão interessada em texturas cenográficas. O interesse de Tarr é sobre a dança dos corpos e o que esta dança expressa do espírito de determinado povo. Nada tão diferente do ethos hegeliano, mas ao invés de observar o comportamento, agora é pura matéria. Não mais a harmonia das danças circulares de Jancsó. Agora, bêbados que dançam tortos, ao som de temas melancólicos, e baleias mortas postas em exibição. Tudo isto invadido por um contraste intenso de luz e escuridão.

A luz e a escuridão serão cruciais em toda reflexão acerca da idéia de harmonia que Tarr construirá. A primeira cena já caracteriza o personagem central da trama, Janos Valuska, e suas vocações: sua busca é por uma harmonia celeste, uma harmonia que movimenta os corpos à sua volta, que lembra o conceito de Heráclito da harmonia inaparente. Valuska é, sobretudo, um idealista que acredita ser capaz de, através da encenação, expressar a harmonia do universo. Em determinado plano, Janos caminha em plano geral em direção a nada mais, nada menos do que o sol. A escuridão e as trevas se confrontam, a primeira como caos, a segunda como ordem, ambas igualmente destruidoras. A primeira incita violência e transformação. A segunda, controle e ordem. O embate entre estas duas forças, simbolizadas pela política Tünde Eszter e pelo Príncipe, o agente invisível nunca visto em quadro, é inevitável.

O vilarejo é o típico microcosmos através do qual Tarr construirá suas teses sociais: é um espaço pré-apocalíptico, com uma atmosfera árdua e escura. O apocalipse está anunciado desde o começo. E que atitudes tomar em relação a isso? Gyorgy Eszter se tranca em seu quarto obcecado pela perfeição harmônica, alheio aos problemas exteriores, defendendo sua inação política; Tunde Eszter coage a população a tomar atitudes contra a violência que se agrupa, é a expressão da ação política repressora e imediata; Janus Valuska tem em seu interesse maior observar o mundo à sua volta, como dito anteriormente, se interessa pela harmonia cósmica. O olhar, como dito anterioremente, é o momento possível de transcendência. Olhar, mais especificamente, a dança dos corpos (os momentos de transcendência do filme são caracterizados, seja pelo olhar de Valuska sobre o corpo da baleia morta, seja pelo olhar do grupo violento sobre um velho nu no hospital. Em ambos os casos, trata-se de olhar um corpo). Mas ninguém além de Valuska ainda se interessa por “olhar” as coisas à sua volta e tentar extrair desta experiência um sentido maior. Por esta aptidão, Valuska é convocado a “olhar” e “entender” exatamente o que é este levante violento incitado pelo agente obscuro, o príncipe. E observa a invasão a um hospital (a metáfora aqui vai ainda mais longe). O fim do levante se dá no preciso momento em que estes homens observam um corpo nu, velho e frágil, inativo (palavras estranhas para caracterizar o que é exatamente o mobilizador social). Ao fim do levante, o controle é tomado novamente pelas forças da claridade. Valuska cai como vítima: por ter observado o levante, é diretamente associado a ele, e sofre as conseqüências desta associação.
Todos os elaborados movimentos de câmera do filme não visam mais do que construir o que é para Bela Tarr a tese fundamental da harmonia – o processo harmônico é natural, e o ato político é uma imposição sobre um processo natural – como diz Gyorgy sobre Werckmeister, toda imposição política é uma mentira que irá, necessariamente, deslocar o movimento natural do universo, como Werckmeister o fez na construção de sua escala tônica. Porém, exatamente por esta intervenção, isto é, esta mentira, ou este deslocamento do curso natural dos sons, é que algumas das obras-primas da humanidade foram realizadas, e que determinados tons foram atingidos. A tensão final atinge esta espécie de fórmula: uma harmonia instalada em bases inteiramente falsas está em desacordo com o curso dos astros ou não? O que dizer disto se, em um circo grotesco que se aproxima, ao mesmo tempo que se encaminha um homem capaz de causar terror e violência, também vem uma belíssima baleia morta?

Toda esta idéia de harmonia se entrelaça, assim como Jancsó, nas sequências de dança. Os passos, porém, já não tem a mesma sincronia, e nem o tom é de esperança. Apesar disso, Janus Valuska reconhece que esta escuridão talvez também faça parte da harmonia celeste. Bela Tarr nos lança esta pergunta.

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